segunda-feira, 25 de julho de 2011

Carreira/Visão do Mercado e da Arte Cinematográfica,

Perspectivas para o Futuro

“Yellow é a cor da criatividade e é a cor das abelhas tendo em conta que as abelhas só funcionam em equipa. Para alem disto, os sinais de transito de “construção” (temporários) são de cor amarela. Então, tudo isto significa que somos uma equipa que construímos um projecto: a Yellow."

Pictures, porque produzimos tudo aquilo que seja moving pictures: cinema, audiovisual, multimédia. Yellow Pictures”.

Soraia Ferreira estudou gestão de empresas na Universidade Católica e passado um mês de concluir a Licenciatura estava em Los Angeles, nos Estados Unidos, onde ingressou num curso de produção e realização cinematográfica. Concluiu o Mestrado em Estudos Cinematográficos na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias em Lisboa e está actualmente a frequentar o Doutoramento em Media Digital. Gere equipas e conta histórias desde que deu inicio à sua actividade como produtora em 2005.

Enquanto estudava em L.A. criou o nome e a produtora em Portugal. De volta ao seu país natal, Soraia e a Yellow Pictures iniciam-se com a produção de uma longa-metragem com uma equipa internacional (Londres, L.A., New York, Lisboa, Porto) : AMOR EM JOGO [STAR CROSS], distribuído em Portugal pela Lusomundo, Making-of na SIC e vários micro-clips para suportes multimédia.

Soraia Ferreira considera que o financiamento é um obstáculo para um jovem produtor tendo em conta que um dos factores principais é o curriculum vitae do produtor. “É difícil ter trinta anos e concorrer com quem produz há trinta anos”.

Como jovem produtora o principal obstáculo é mostrar que se sabe produzir. Mesmo com uma visão fresca e jovem, no “Portugal pequenino” a industria é também pequena e está, obviamente, muito concentrada. Dá como exemplo a experiencia da Yellow Pictures, que funciona no Porto, e na produção da longa-metragem AMOR EM JOGO, teve que recorrer a chefes de sector e equipamento de Lisboa (no Porto produz apenas projectos de pequena dimensão).

“Produzir, é como todos os negócios: temos que estudar todas as possibilidades para sabermos como chegar à crista da onda.”

Soraia não considera a concorrência um obstáculo porque ambiciona ter muitos colegas produtores no activo porque assim haverá trabalho para as equipas de rodagem e pós-produção, das quais se precisa durante três meses num projecto de quatro anos de produção, por exemplo. Assim garante-se que há fluxo de trabalho sabendo que a existência deste que alimenta o mercado.

Obviamente que sente a concorrência no que diz respeito a fundos/financiamento mas acredita que, se houver produção com qualidade haverá quem queira colaborar com a Yellow Pictures. A co-produção é um caminho para conseguir produzir. E como se produz um projecto entre dois ou mais países há mais possibilidades de vende-lo também para o estrangeiro.

Começou com as longas-metragens mas agora pretende mudar de estratégia. Não deixará de continuar a fazer projectos de cariz nacional porque é isso que Soraia pretende que distinga a Yellow Pictures das outras empresas, tendo como principal objectivo as vendas internacionais, conhecendo a pequena dimensão do mercado português. Considera economicamente insustentável e inviável fazer projectos só para

o mercado português, principalmente com orçamentos elevados. Esta é a principal razão que levou Soraia definir esta estratégia para a sua empresa.

Devido às rápidas evoluções tecnológicas e a evolução das audiências, encontra-se num período de reorganização da estratégia da Yellow Pictures. A diversidade das plataformas existentes fez a equipa da Yellow questionar “Onde é que a nossa audiência está?”. E é isso que têm vindo a estudar. Nos dias de hoje a audiência é extremamente activa, não se contenta a ver apenas um filme no cinema, pretende encontrar produtos associados, seja na TV, PC, Telemóvel... são estes os produtos em estudo.

Com alegria e muita firmeza Soraia confessa que conseguir produzir em Portugal é uma questão de tempo e persistência...é uma questão de gostar.


Julho 2011

Bruno Bessa Roldan Telésforo

Joana Bomfim de Matos da Cunha

domingo, 17 de julho de 2011

Considerações finais

Tony Costa e Rafael Antunes

Foi uma experiência muito interessante que experimentamos com Ruy Guerra. Depois de diversas semanas a pesquisar e a explorar os seus filmes, ficamos a conhecer melhor o realizador de múltiplas capacidades criativas. É uma personagem cativante que nos agrada ouvir e muito em especial no seu percurso de vida por diversos países. Tínhamos confirmado ao longo da nossa pesquisa que se tratava de uma personalidade versátil, comunicativa e agradável. Confirmamo-lo pessoalmente. Privamos com Ruy Guerra ao longo de dois dias na masterclass da Universidade Lusófona. Admiramos a sua vitalidade física que depois de um dia inteiro numa sala a falar-nos da arte do cinema concedeu-nos quase uma hora de entrevista, fluida e completa. Fica-nos na memória um realizador incansável que olha para o futuro como se ainda tivesse 30 anos de idade.






ENTREVISTA COM RUY GUERRA.

1º ANO DO MESTRADO ESTUDOS CINEMATOGRÁFICOS

Tony Costa e Rafael Antunes

1- O Ruy Guerra é um artista multifacetado, é realizador de cinema, actor, director de fotografia, escreve para cinema, para teatro, fez letras para música. Dentro de tantas actividades, como se define?

RG: Bom, isso é resultado do subdesenvolvimento. Porque se eu fosse de um país riquíssimo, possivelmente seria só realizador de cinema. Como é difícil viver só de uma actividade como a de realização, neste caso, no Brasil, em vez de ir para o desemprego, fui fazendo outras actividades. Isso obrigou-me a caminhar para outras áreas relacionadas onde me sentisse capaz. Também foi resultado de certas atitudes politicas porque, por causa da censura, eu estava proibido de trabalhar no Brasil. Nessa altura, fui para o campo da música, escrever letras de canções... Na época, proibiam-me as canções, fui escrever como cronista para jornais, proibiam-me como cronista e voltava para editar ou montar filmes e, se não funcionava, tentava o teatro e, quando o teatro não dava, eu ia para os espectáculos musicais. Enfim, fui saltando em todos os galhos por uma questão de sobrevivência. Mas isso, para mim, acabou sempre por ser muito gratificante. Porque, do ponto de desenvolvimento, se não fosse isso, eu possivelmente nunca teria abordado essas áreas.

2 – Com 17 anos fez um filme, com uma câmara de 8 mm emprestada, sobre os trabalhadores portuários negros em Moçambique e que lhe trouxe problemas com a polícia política. Já tinha consciência do poder que o cinema podia ter?

RG: - Eu não sei se tinha consciência. Eu sabia, inclusivamente, que tinha de revelar uma parte dum filme em Moçambique e tive de improvisar uma revelação com a ANC, na África do Sul, porque os filmes em que eu estava trabalhando e fazendo filmes clandestinos para a intervenção política estavam sendo censurados nos laboratórios. Então, mesmo se eu não tivesse consciência, por outro lado, já sabia que, de qualquer maneira, os filmes que foram filmados na própria África do Sul eram censurados. E então, eu tinha obrigação de ter consciência disso, não é? E como mandei alguns filmes para lá que não voltaram, que foram censurados, eu, obrigatoriamente, admiti que, se os órgãos de poder estavam tão atentos ao que se estava fazendo, o cinema tinha algum perigo.

3 - Foi perseguido pela polícia política por causa do filme. Conte-nos esse episódio com a PIDE.

RG: Isso foi por assinar manifestos de movimentos de unidade democrática, que se manifestavam na época das eleições, para a presidência e outras atitudes. E por escrever em jornais com um nome com o qual não podia escrever, artigos etc. Não foi propriamente ou directamente por causa do filme.

A prisão foi que havia um lado… Moçambique era um meio muito pequeno, daquela burguesia local branca. Não nos esqueçamos que estávamos numa colónia em que nós, filhos de colonos portugueses, éramos portugueses de segunda classe. Oficialmente, de segunda classe. Os colonos portugueses, no caso dos meus pais, eram lisboetas e tal, brancos, com uma certa nobreza por ser de Lisboa. Era um meio muito pequeno que afectava todos. O caso de, um garoto como eu, com 16, 17 anos, ser preso... isso mexia muito com a estabilidade local. Às vezes, era preso porque escrevia em jornais que não eram considerados gratos, como o jornal “Itinerário”, por exemplo, que só tinha uns certos períodos de liberdade controlada, vigiada, em momentos pré-eleitorais que se dava uma pseudo liberdade de imprensa.

E eu, nesses momentos, escrevia vários artigos que assinava com o meu nome e isso não era aceite. Podia assinar com pseudónimo e recusei-me a assinar com pseudónimo. Lembro-me que a polícia prendeu-me uma vez e disse “Porquê que é que você não escreve com o seu pseudónimo?” E eu disse: -“Mas porquê?” – “Porque todos os seus amigos que assinam com pseudónimos não têm problemas. E eu disse: “Quais amigos?” “Fulano tal e fulano tal.” E eu disse “Mas se você sabem, porque eu escrevo com pseudónimo? Não vejo razão para isso”. E então prenderam-me. Quando vim para Portugal com o meu pai, para fazer a última cadeira que me faltava, a PIDE foi avisada e eu fui preso. Ainda o barco estava ao largo e a PIDE foi-me buscar por ser uma persona non grata. Passei uma noite lá preso, depois soltaram-me e fiquei vigiado. Uma vez, nas terças-feiras clássicas que, na época, existiam no Tivoli, eu estava no segundo balcão, que era para onde iam os estudantes, porque era mais barato. Havia sempre uma apresentação e, nesse caso, acho que o filme era “Milagre em Milão” e um padre que lá estava interrompeu o filme a meio e o pessoal pateou, assobiou, protestou, mas não era por ser padre, o que seria grave naquela época, porque havia o Cardeal Cerejeira e aquela ligação do Estado com a Igreja, mas porque foi no meio do filme e não era uma coisa para ser feita, segundo os nosso critérios. E quando saímos, vários fomos presos. Havia só esse tipo de questão mas, finalmente, a minha família conseguiu manejar e deixaram-me ir para França e só voltei depois do 25 de Abril. Tive um processo politico mas acabou por não acontecer mais nada porque não voltei.

4 - Em 1952, vai para Paris estudar para o IDHEC (Institut des hautes études cinématographiques), onde havia uma intensa efervescência na discussão sobre a politica de autor, com Truffaut, Godard, Rohmer e Chabrol. Como foram esses anos?

RG: Foram extremamente ricos. Primeiro, porque eu não conhecia o cinema Europeu, pois em Moçambique não passavam filmes europeus. Quando estive aqui em Portugal, durante esses 6 meses em que completei o Liceu, via alguma coisa mas não tinha tanta escolha como tinha em Paris, uma cidade que, até hoje, é uma cidade ideal para se ver filmes. E naquela época, pululavam os cineclubes, havia a cinemateca e eu tinha um atraso histórico. Naquela época, eu só tinha visto um ou dois ou cinco filmes europeus. Ao mesmo tempo, também pelo facto de estar em contacto com jovens. Na minha casa, éramos uns 40, dos quais tínhamos uns 10 ou 12 franceses e o resto eram jovens de todas as nacionalidades: gregos, turcos, egípcios, vietnamitas, canadianos, mexicanos, brasileiros, todo o mundo trocando impressões e discutindo cinema, vendo cinema todo o dia, escrevendo sobre cinema, lendo sobre cinema, vomitando cinema. Foram anos extremamente ricos. E com o facto acrescido de estar com 22,23 anos, que é um momento em que se está aberto para tudo e se tem energia para estar aberto para tudo. Foram anos que guardo com muito carinho, extremamente ricos para o processo pessoal. E ao mesmo tempo, também tinha um choque de cultura. Havia o facto de estar a falar um idioma estrangeiro, que eu falava pouco e mal. A pouco a pouco, fui aprimorando até chegar a um nível razoável de entendimento e acabei por ficar lá por vários anos. Mas tinha aquela questão de me faltar o português. Eu nunca quis ficar em França, propuseram-me lá ficar mas eu nunca quis, porque a palavra, para mim, é muito importante e eu nunca concebi viver num país que não falasse o português. Então, tinha esse conflito cultural, que era acrescido porá aquele cartesianismo francês, que sempre teve a capacidade de me irritar muito, já desde garoto, que é a ideia que tudo se resolve pela razão e que é tudo esquemático e há relações causa-efeito muito bem marcadas e as conclusões são óbvias e evidentes e matemáticas... E eu nunca acreditei que a vida fosse assim. Tive esse percalço no andamento da minha vida mas, de maneira nenhuma, tirava o prazer desses anos que guardo com muita, não diria saudade, mas com muito afecto.

5 -Queria ser escritor, adaptou para o cinema obras de Gabriel Garcia Marquez e Chico Buarque, entre outros, e chamam-lhe o cineasta da palavra. Como é que a literatura influencia o seu trabalho?

RG: Queria e quero ainda ser escritor. Esses sonhos da juventude, geralmente, não se destroem com facilidade. Podem não se realizar mas não se destroem, e ainda quero ser escritor. Espero escrever mais porque o que acabei escrevendo foram crónicas, poesia e, claro, muitos guiões. Mas como uma coisa, simplesmente, de transição e não considero que isso fosse a escrita a que me estava propondo fazer quando era jovem. Mas não foi isso que me levou a escolher romances para fazer filmes. Curiosamente, sempre tive muitos amigos romancistas e não acho que tenha sido uma escolha deliberada mas os que me eram mais próximos, são da música e da literatura. Tenho bons amigos de longos anos cineastas mas, no meu trato quotidiano, sempre foram mais os músicos e os escritores. Com os escritores, obsessivamente, eu informava-me sobre o método de trabalho, perguntava-lhes quanto tempo para isto, como é que era… Bem, estou muito bem informado em como se escrevem romances, só falta escrever. Estou a meio de um.

Sempre senti uma paixão pela palavra, pela literatura e pela poesia, evidentemente, mas escolhia os filmes porque houve uma altura, uma década em que filmei mais romances porque não tinha tempo para elaborar os meus próprios guiões. Agora estou filmando menos, tenho esse lado negativo mas, por outro lado, positivo. Tive a oportunidade de escrever três guiões meus, que espero que se façam e que são três histórias originais. Não tenho nada contra escrever a partir de romances mas gosto de escrever as minhas próprias histórias.

6- Está ligado ao surgimento do cinema novo Brasileiro e o filme «Os Cafajestes», de 1962, foi um enorme êxito de bilheteira. Era um cinema que contrariava a produção que, até então, se fazia no Brasil. Como define esse período?

RG – Esse foi um período extremamente rico porque o próprio Brasil estava num momento de uma espécie de euforia, de um orgulho de ser brasileiro, trazido pelo Juscelino Kubitschek, que teve a capacidade de dar ao país uma onda de esperança e um orgulho de ser brasileiro, que era uma coisa muito contestada frequentemente. O país estava caminhando. Isto era quando o Juscelino queria fazer “cinquenta anos em cinco”, uma série de utopias, criando a cidade de Brasília, enfim... Havia uma liberdade muito grande de expressão. O Juscelino, com muitos defeitos que teve, inclusivamente, quando a inflação chegou a quarenta por cento por mês, num determinado momento, ou construindo Brasília, que também serviu como lugar de muita corrupção e muitas fortunas ilícitas dentro desses projectos megalómanos, como era o de construir uma cidade no meio de um descampado, mas ao mesmo tempo, era uma pessoa que nem os movimentos contrários, revolucionários e tal (..), ele amnistiava-os, com uma grande generosidade e sabedoria política, e o país teve muita vibração mas dentro duma certa tranquilidade. E foi nesse contexto que as águas foram propícias para o surgimento do chamado “cinema novo”. Não é que houvesse grandes ajudas estatais, não houve um olhar politico para o cinema mas, de alguma forma, apareceu uma forma de cinema muito artesanal. Por exemplo, no caso d’«Os Cafajestes», é uma cooperativa formada por todos nós, que ninguém tinha salário e todos teriam uma percentagem sobre um eventual lucro do filme, um entrava com a câmara, um pequeno grupo de empresários entrou com o dinheiro mínimo para poder comprar o negativo e fazer o filme... Esse cinema artesanal foi muito bem estruturado, no caso d’«Os Cafajestes». Nós tínhamos uma visão muito clara do que devia ser o filme. Nós queríamos um filme contra a indústria “tradicional”, que tinha sido o fracasso da (Companhia Cinematográfica) Vera Cruz, em S.Paulo, da grande indústria, que era um cinema académico, um cinema da burguesia mas voltado para a História do Brasil. Mas uma História dos senhores de escravos, dos grandes plantadores de café, uma História muito elitista, de boas intenções mas uma História muito acomodada sem nenhuma proposta de linguagem nem de coisa nenhuma e nós fizemos um filme que não era bem contra esse cinema, porque esse cinema já tinha morrido de si próprio. O que havia, ainda, no Rio de Janeiro, era a chanchada, que eram comédias populares de grande êxito e que, na verdade, eram extremamente simples, de grande apelo popular. Mas era sempre a mesma história de dois compéres, uma historiazinha de amor, uma música de carnaval, uma cena em bôite, uma aventura engraçada e isso tinha um grande sucesso e não havia espaço para mais nada. Então, nós propusemo-nos fazer um filme que já tivesse características que pudessem ser consideradas “artísticas”, entre aspas mesmo, e que se impusesse por uma certa qualidade cinematográfica, e ao mesmo tempo que tivesse uma capacidade de chamar a atenção sobre si, pela sua temática e pela sua linguagem. E nada melhor que criar um escândalo, que foi o caso do nu frontal da Norma Bengell, que foi feito de uma maneira que a censura não a pudesse cortar. É uma cena que virou antológica, porque são três minutos, é um chassis inteiro em volta de um carro filmando a Norma Bengell, que era uma mulher lindíssima, escultural, (estou agora a organizar uma homenagem para ela na Academia de Cinema do Rio de Janeiro ) e, a censura ou tirava o plano inteiro ou não podiam tirar nada. Cortassem o que cortassem, ela apareceria sempre nua, e não contava que os censores fossem capazes de entrar numa cena e cortar. Passou a censura e o filme foi um êxito de bilheteira enorme, o filme pagou-se em quatro dias de exibição só no Rio de Janeiro.


7 - Disse numa entrevista que o cinema novo era feito com muito poucos recursos, que o importante era filmar. Hoje, os jovens tem acesso a meios técnicos muito mais barato e acessíveis. O que os impede de conseguirem um movimento tão importante como o cinema novo?


RG- A Obsessão pela técnica. O produto bem acabado no aspecto técnico. A busca de uma fotografia dentro de certos padrões consideradas perfeitas. O desejo de um produto acabado sobre o ponto de vista profissional com níveis de extremos de perfeição. O que nós tínhamos muito claro, é que nós fazíamos o cinema do possível, o que era possível fazer, não nos interessava o conceito de perfeição ou de imperfeição. Fazíamos o cinema que é possível fazer nas condições que dispúnhamos. A qualidade do filme era uma coisa secundária. O que interessava era dizer coisas, abordar temáticas. Se a fotografia fosse boa, óptimo. Não se procurava a perfeição, se a fotografia fosse desfocada, óptimo. Inclusivamente, em “Os Cafajestes”, começo o filme com cenas desfocadas intencionalmente, o que, de uma certa forma, é já uma proposta para que o espectador não procure ver tudo dentro de parâmetros de rigor estético. Tanto que, a primeira cena que filmei, recebi um telefonema do laboratório: “Ruy, você desfocou tudo, não presta para nada.” e eu respondi que era assim mesmo! E do laboratório disseram: “Ah, é assim mesmo? Estão todos loucos”.

Acho que é uma atitude extremamente perigosa e que já foi contestada por um realizador cubano, que agora não me lembro do nome, que escreve um texto muito bonito em que defende o cinema imperfeito, em que ele não advoga a imperfeição mas que o cinema imperfeito é tão válido como o perfeito. Quer dizer, não ficar amarrado pela necessidade de fazer só coisas perfeitas e ao “só se puder fazer coisas perfeitas é que se fazem”. A perfeição surge de outros valores dentro da linguagem. Hoje em dia, e já na história do cinema, uma quantidade de filmes que estão dentro dos padrões estéticos vigentes, também estão completamente fora deles, são filmes que têm coisas desfocadas, que têm imagem suja, raiada, têm o que quiser mas que têm algo a dizer. Eu sempre disse que faço qualquer filme com qualquer material, se me derem uma câmara com uma lente só, eu filmo com uma lente só, se me derem uma câmara sem grua, eu filmo sem grua. Já tive até filmes que me deram grua e eu disse que não precisava de grua, e se tiver uma câmara sem tripé, mas se tiver um operador de câmara que segure bem a câmara, eu faço. Os jovens precisam de se convencer hoje, que a estética não é uma coisa absoluta, não há um modelo, a estética cria-se a partir de umas propostas de linguagem mais amplas do que, simplesmente, a pureza da imagem, ou a pureza da montagem, ou a qualidade do som. O nosso som era um som péssimo, na época do cinema novo, porque não tínhamos som, era feito quase no limite da audibilidade. «Os Fuzis» foi inteiramente “dobrado” e não tínhamos sequer som guia para saber o que tinha sido dito. Eu acho que, quando se tem vontade de fazer um filme e se encontra uma equipa capaz de arriscar dentro desses parâmetros, vocês podem fazer os filmes que quiserem. E dizem-me: “Ah, mas depois não se consegue exibi-los.” Os outros filmes também não se conseguem exibir, os filmes que estão, aparentemente, dentro dos parâmetros técnicos e artísticos que são exigidos à priori, porque o crivo da exibição e da distribuição não está unicamente vinculado a esse tipo de filmes. Pelo contrário, até acho que hoje é mais fácil fazer com que um filme aparentemente sujo e consiga furar o crivo da distribuição do que um filme mais ou menos bem acabado. Não estou aqui a defender um cinema miserabilista ou um cinema, obrigatoriamente, de poucos recursos mas o que eu defendo é que não se deve parar de filmar porque não se têm as condições ideais. Porque as condições ideias em cinema não existem, nem para os filmes de cem milhões, nunca há condição ideal para fazer um filme. Há condições melhores, piores e outras quase impossíveis. Nós devemos pensar o cinema de uma forma que, se é possível fazer, faça com o que puder fazer. Também a favor dessa vontade e dessa estética que surge dessas condições, é que surgem respostas novas para suprir, justamente, as deficiências daquilo que não se tem. Acho que o que faz falta hoje à juventude é essa facilidade. A juventude sempre precisou de desafios e não se está a sentir suficientemente desafiada, seja pelo status quo do país ou por não ter sido desafiada pelas dificuldades inerentes ao processo de filmagem. Está procurando simplesmente conquistar essas condições ideais para fazer um filme quando devia lutar por aquilo que tem a dizer, independentemente de ter as condições que tiver. Se tem alguma coisa para dizer, deve fazê-lo, não importam as condições que tiver.

8 - Voltou a Moçambique depois da independência para ajudar a fundar INC, o Instituto Nacional de Cinema. O que pretendia com essa experiência?

RG – Eram precisos quadros técnicos capazes de formar quadros moçambicanos, de gente que morasse lá. Eu fui e não sei se tinha a utopia de ficar lá ou não. Não sabia dizer, mas descobri rapidamente que não podia readaptar-me ao país de forma definitiva. Estava ali numa missão de resposta à minha juventude, uma resposta aos desejos de quando era jovem, para a independência de Moçambique, enfim, sentia-me obrigado a estar lá naquele momento mas uma obrigação profundamente agradável. Redimi-me um pouco de ter estado ausente das lutas de independência, não porque tivesse fugido dela mas porque tinha saído antes e já tinha começado a vida noutro caminho. E também, muito feliz por ter sido requisitado pela FRELIMO para isso e que me deu um campo amplo para poder trabalhar. A minha função foi, basicamente, formar quadros. Levar gente capacitada para lá e formar jovens moçambicanos para serem directores de fotografia, realizadores, documentaristas, enfim, a trabalharem nas diferentes áreas do cinema. Isso foi muito gratificante porque, hoje, muitos deles são bons técnicos e, de alguma forma, sinto que respondi um pouco a questões da minha própria juventude.

9 - Filmou em Moçambique «Mueda, Memória, Massacre» em 1979/80 e, em Portugal, «Monsanto», em 1999/2000. Como foi a abordagem às vitimas dos dois lados do mesmo conflito?

RG- São duas temáticas que, de certa forma, se tocam mas que responderam a momentos diferentes do meu processo pessoal. Na época das aldeias comunais, eu propus um trabalho e trabalhei vários meses nisso. Era um sistema de exibição nas aldeias comunais, com filmes que corressem de aldeia em aldeia, para a formação de um público cinematográfico moçambicano nas diferentes aldeias por todo o país. Cheguei a ter arquitecto para fazer um estúdio de pontos de exibição, um trabalho longo mas que foi mal interpretado e que foi cortado pela raiz. Como senti que não tinha mais nada que fazer em Moçambique, disse que queria eu fazer um filme sobre Mueda. Foi filmado no Norte de Moçambique em condições extremamente precárias, numa região que nem sequer tinha comida nem nós quase tínhamos para comer. Eu quis que o filme fosse inteiramente rodado em Moçambique, revelado em Moçambique, podia ter sido feito a cores mas queria que fosse uma longa metragem feita inteiramente em Moçambique. É um filme que representa o primeiro momento da luta armada, quando se desencadeou a união da FRELIMO com os outros movimentos, e que é um momento histórico importante, que fiz com depoimentos de gente e com os próprios sobreviventes do massacre, que contam essa história numa tradição oral. Todos os anos, nesse dia, fazem essa representação teatral. Para mim, era extremamente surpreendente porque, em vez de ser um massacre onde morreu muita gente das famílias dos presentes, é um acto lúdico de prazer que eles fazem, nessa comemoração que contrasta com a nossa visão que tinha que ser uma coisa solene, uma coisa triste. Mas não, é um momento extremamente alegre e festivo. Já “Monsanto”, que me foi proposta aqui pelo Cunha Telles, quando estive de passagem e que me interessou pela temática. Além de ter vontade de filmar em Portugal, porque já tinha filmado em vários países, Cuba, Moçambique, França, México e nunca tinha conseguido filmar um filme em Portugal. E mesmo sendo um ex-português de segunda classe, eu sentia-me já português de primeira classe e sentia que um dia teria que fazer um filme em Portugal também. Sinto necessidade de registar a minha presença. Embora fique meio triste porque ontem, na livraria, peguei uma antologia do cinema português e eu não consto lá. E depois fizeram uma pequenininha com 30 páginas de “portugueses em Moçambique”, “portugueses no Brasil”. Venho lá, pelo menos, nessa estou, só como editor, e eu digo: “Oh… sabem muito sobre mim mas enfim...” Voltando ao filme «Monsanto», era uma temática que me era próxima, as guerras coloniais, e achei a história bonita, no sentido de estar bem escrita embora fosse cruel e pareceu-me interessante. E fiquei muito feliz por tê-lo feito.

10 - O mundo lusófono é avaliado hoje entre 190 e 230 milhões de pessoas. O português é a oitava língua mais falada do planeta, a Literatura e a Música conseguiram vencer barreiras. Hoje, no mundo lusófono, todos conhecem Jorge Amado, Mia Couto, José Saramago, Caetano Veloso, Chico Buarque, entre outros. Na televisão, as novelas da Globo foram um caso de sucesso no mundo. O que faz com que o cinema feito nos diversos países Lusófonos não consiga vencer estas barreiras?

RG – Vontade política. A noção de importância dessas relações. Não compreenderem que todos os grandes caminhos económicos passam pelos entendimentos culturais. Não compreenderem o sentido do que era o mercado de antigamente, em que o mercado não era só uma troca de produtos, era uma troca de informações, era uma troca de relações, uma troca de experiencias e, no caso específico do cinema, não compreender que é um desses veículos que, mais facilmente transpõe as fronteiras, se houver o mínimo de amparo, o mínimo de apoio económico. O exemplo maior que está aí, visível, ratificado e compreendido, é o de que tudo o que é na América, hoje, foi através do cinema, com uma penetração do cinema americano no mundo, a partir dos anos quarenta. Depois da guerra, entraram em todos os países, vendendo o american way of life, vendendo coca-cola, o blue jean e todos os grandes produtos foram vinculados através do cinema, dos seus mitos e das suas histórias. Enquanto os governos acharem que a cultura merece apenas 0,5 % do PIB nacional, isto vai continuar assim. Enquanto não compreenderem que a cultura merece muito mais que isso, vamos continuar a ser países sufocados economicamente. Nem sequer quero dizer que a cultura vai dominar os outros países mas, se quisermos uma independência económica, numa relação de igualdade, tem que ser pelos caminhos da cultura, pelos caminhos do diálogo e pelos caminhos da troca de experiências, que não são simplesmente trocas em percentuais e em números de chifre da fé. É pela troca de valores culturais, que é o que há de fundamental no ser humano, que é o “olhos no olhos” e isso só se consegue através da cultura.

11 - Filmou em Cuba, França, Brasil, Portugal, Alemanha e em muitos outros lugares. A linguagem cinematográfica é universal?

RG – Não, de jeito nenhum. Eu acho que ela está tentando ser uma linguagem universal na redução das suas potencialidades, não no alargamento das suas potencialidades. Como a própria linguagem do romance, ou da poesia, ou da pintura, não é uma linguagem universal pela redução das suas potencialidades, mas justamente pela identidade que essas linguagens vão tendo através dos seus artistas. O cinema só se pode tornar universal, na medida em que cada cinematografia corresponder à cultura do seu próprio país ou da sua própria região ou às suas próprias preocupações momentâneas e históricas. Querer padronizar a linguagem, sob pretexto de a tornar universal, é a mesma coisa que quiseram fazer com o esperanto. Inventaram uma língua que, se toda a gente a aprendesse, podia saber todas e, no fim de contas, é uma língua sem sabor, sem sal, sem pimenta, sem nada que ninguém aprende e que vive na cabeça de uma meia dúzia de pessoas. Nunca encontrei na minha vida, até hoje, e vou fazer oitenta anos, alguém que falasse esperanto. A linguagem universal tem de partir de cada cultura. O cinema tem de ter a sua especificidade. Evidentemente, tem uma matriz básica, que são os elementos específicos da linguagem cinematográfica e esses vão ser os mesmos que, com o trânsito que existe hoje da globalidade e com trânsito dos meios visuais, da multimédia, da televisão, se tornam, numa certa forma, gerais. Mas não é tentando pasteurizar essa linguagem, nem procurando um modelo único de dramatologia e um modelo único de recursos cinematográficos, não é com um único veio de criação que se estabelece uma linguagem universal. O caminho é o contrario.

12 - Nas suas aulas, costuma dizer aos seus alunos que, para fazerem filmes norte-americanos, os ensina em três horas. O que lhes quer transmitir?

RG – Isso quer dizer que, o cinema americano dos anos quarenta e cinquenta, era um cinema muito mais rico, mais vital em todos os sentidos que ele é hoje. Quero dizer que a linguagem da dramatologia aplicada ao cinema americano está, absolutamente, como uma receita de bolos, em que há a maneira de começar, a maneira de acabar, a primeira virada, a segunda virada, o final abrupto, uma série de regrinhas que vêm da Antiga Grécia, mas que são reduzidas e são impostas com rigidez, o que não tem nada a ver com as experiências do teatro Grego. Pelo contrário, colocando um paradigma redutor, esquemático e, dentro dessa fórmula, estão a querer que toda a cultura, de todos os países e da própria cultura americana, caiba dentro disso. E não cabe dentro desse modelo. O modelo do herói, do antagonista, o protótipo do individualista, enfim, os valores da sociedade americana, estão incrustados dentro desse modelo. Isto para dizer que é um sistema impositivo e que não retrata nenhuma cultura, nem a própria cultura americana. Esse cinema está a imbecilizar o público, autenticamente imbecilizando o público. É só trocar o advogado pelo cowboy, pelo pirata, pelo padeiro e os conflitos são os mesmos. Tanto que, hoje em dia, é assustador, há um software que escolhe a profissão, escolhe o conflito, escolhe o lugar, onde quer que se passe, num elevador ou num navio pirata ou numa praia, e depois o software faz a historinha sozinho. Quer dizer, estão a robotizar o cinema além de tentarem robotizar o ser humano, e querem que isso seja o cinema que é feito em toda a parte do mundo, quando ainda dão espaço. Os governos de cada país ainda dão espaço para exibição, porque esse cinema, em certos países, na maioria dos países, ocupa 80% da tela, outros 90 e outros quase 100, talvez a França seja o único caso que tem mais de 50% da tela ocupada com produções nacionais. Esse cinema, é um cinema que só está fabricando idiotas e, como o espectador já sabe o que é aquele caminho, vê aquele filme e entende aquele filme muito bem, é digerido muito facilmente e esquece-se que o cinema não é para ser só isso. É para ser um divertimento, sem a menor dúvida, mas também para ser muitas coisas mais, além de um divertimento.

13 - Depois de um longo e riquíssimo percurso de vida, de ter vivido as guerras de libertação em África, de ter convivido com artistas franceses precursores do Maio de 68, ter emigrado de África para o Brasil e ficar sujeito à nova ditadura e ainda à Guerra Fria, que balanço faz do mundo de hoje?

RG – Você não facilita a minha vida... Eu acho que há duas atitudes diante da vida. Que não devem partir da racionalidade, devem partir de um acto de sobrevivência ou de fé, não obrigatoriamente no sentido religioso mas no sentido de uma convicção profunda ou de uma escolha, e que é uma atitude de acreditar, ou não, no futuro. Isso quase tem sido tomado como aporia, em que tanto vale isso como vale o contrário. Você escolhe em que lado é que se quer colocar. Eu coloco-me sempre do lado que me parece mais vital, prefiro acreditar sempre nas possibilidades. Então, eu acho que o mundo hoje enfrenta uma crise, mas o mundo enfrentou muitas outras crises e é evidente que, na contemporaneidade de cada crise, dentro do processo da história, a última que aparece é, sempre, a mais importante, a mais vital e a mais decisiva. Eu não sei se a crise que atravessa o mundo de hoje é isso, pode ser que ainda venham outras piores, pode ser que, depois desta crise, venha um período paradisíaco ou, pelo menos, não tão catastrófico quanto o que estamos a viver, e pode ser que estejamos a criar uma imagem demasiado severa do processo civilizacional como ele é hoje, se o compararmos com outros momentos da história e que foram momentos de grandes crueldades. Não faltam momentos de crueldade na História. O que talvez hoje seja mais assustador, é que essa crise é, a nível mundial, (desencadeada) pelo processo de comunicação que foi criado pela tecnologia moderna. Antigamente, se alguma coisa que acontecia na Europa, fugia para a China, se acontecia na China, ia para o mar do sul, aparentemente, havia refúgios dentro do próprio planeta. Hoje, esses refúgios já não existem e tudo é alcançável, tudo é catalogado. Os computadores encontram-no através de qualquer sistema, dos mais simples sob o ponto de vista técnico, mas eficazes na capacidade de ir buscá-lo ao buraco onde você possa querer esconder-se, e isso, de certa forma, assusta. É um planeta sem guaridas. Se uma catástrofe acontece na China, vai acontecer no resto do mundo. E isso assusta-nos, porque não estamos habituados a essa globalidade. Mas quem sou eu para dizer que isto vai por um caminho de uma possível melhoria ou se vai agravar. Não tenho a menor ideia, nunca tive vocação de profeta e não vou arriscar nada. Mas, pessoalmente, prefiro que cada um faça o seu trabalho de formiga e que lute para que essas coisas não aconteçam. E eu, na medida das minhas ínfimas e minúsculas participações nesse processo mundial, estou sempre de um lado que vai contra aquilo que me parece errado, obstinada e violentamente contra, e não abro mão desse meu direito.

14 - Conhece a realidade cinematográfica Portuguesa e Brasileira. Quais as grandes diferenças de produção?

RG – A grande diferença de produção é a potencialidade do mercado nacional. O Brasil tem um universo de espectadores potencial de quase 200 milhões, Portugal tem 10 milhões. As potencialidades do mercado são, evidentemente, desproporcionais e, tal como o cinema americano se conseguiu impor a partir da guerra de 1914-1918, pela criação de um mercado interno forte, e só depois do mercado mundial, o Brasil também tem capacidade de produzir para uma produção interna e ganhar força suficiente para ter essa produção noutros mercados como, por exemplo, a China, com quem se está a estabelecer relações de mercado noutro sentido. Se se compreender a importância do cinema, o cinema pode desenvolver-se e entrar dentro do mercado chinês com facilidade. Como já aconteceu há uns quinze, vinte anos atrás, com um filme de Nélson Pereira dos Santos, que fez a vida de dois cantores country do interior e que foi um êxito popular na China. Portugal tem a limitação do seu mercado próprio, se não houver um grande apoio estatal e a criação de uma política de negociação e de penetração noutros mercados, estará sempre fechado numa espécie de gueto cultural. Havia um momento que o cinema português me parecia extremamente interessante, não sei se continua, é que, justamente, soube transformar esse gueto num cadinho experimental. Não sei se ainda continua. Por não necessitarem tanto de ir buscar ao público o ressarcimento dos meios envolvidos, que eram, praticamente, meios a fundo perdido, os realizadores tinham a capacidade e a possibilidade de experimentar coisas que, num cinema mais comercial e mais voltado para o mercado, lhes seria vedado. E então, criavam obras que pareciam extremamente importantes pelo seu lado experimental, coisa que um cinema que tenha vocação de mercado fica mais condicionado e que é sempre avalizado pelo número de bilhetes vendidos. Portugal estava de fora dessa lógica comercial mas não sei se ainda continua.


15 - Como explica o sucesso internacional de filmes como «Cidade de Deus» e «Tropa de Elite»?

RG- São filmes de acabamento tecnológico que competem nos valores do mercado geral do cinema e são um espectáculo de violência. Tornar a violência num espectáculo sempre deu bons rendimentos. Além disso são filmes, principalmente o «Tropa de Elite» são filmes que, de certa forma, exaltam a violência, embora talvez não haja intenção consciente por parte do realizador, pelo menos do que conheço, de fazer a apologia da violência. Os filmes em si, dão esse espectáculo da violência e isso satisfaz um público que procura esse tipo da catarse e os filmes têm um excelente resultado. Para o cinema brasileiro, eu não sei se isso é tão útil, porque o sistema de produção americano nunca deixa entrar os filmes estrangeiros no mercado americano. O que eles fazem, é pegar nos autores e levarem-nos. São pessoas que já estão fazendo filmes americanos, quer dizer, preferem pegar no seu talento e porem-nos no seu mercado, fazendo filmes dentro do seu modelo, como fizeram com realizadores de outros países. Têm talento mas não vão para lá fazer isso. Então, acho que é uma ilusão a ideia de fazer filmes para poder entrar no mercado americano, que é um mercado riquíssimo e porque o mercado é extremamente fechado nesse sentido, e para o cinema brasileiro isso não se repercute de qualquer forma, a não ser que tenha êxito no seu próprio país. É o que está a acontecer, porque é mais fácil agradar com a violência do que agradar com algum tipo de reflexão ou outro tipo de preocupação dentro do que a sociedade brasileira possa ter de importante a ser debatido.

16 - Muitos dos seus filmes têm um conteúdo político. Acha que o cinema tem um papel essencial na denúncia das injustiças sociais?

RG – Acho que toda a arte tem um conteúdo político. Umas debatem-no, usam como tema a própria política mas, mesmo aquelas que abordam problemáticas que, aparentemente, não são políticas, o olhar sobre essa problemática filtra sempre uma atitude política dos autores do filme. Uma história de amor pode ser uma história extremamente política. Para dar um exemplo, um pouco imediatista, mas muito evidente, se você faz uma história de amor entre um branco e uma negra, já tem um conteúdo político, com reacções dos primeiros racistas, tão vigorosos aqui na Europa, felizmente no Brasil isso está bastante mais diluído, até pela própria mistura das raças e por uma política oficial muito atenta a essa questão do racismo. Quer dizer, toda a obra de arte é política. É evidente que, em certos filmes meus, talvez pela minha génese, pelo facto de ter nascido em Moçambique, pelas condições que já conversámos, o facto de ter vivido a maior parte da minha vida em países ditatoriais, inclusive na França, quando fui para lá, estava lá de Gaulle, com as guerras da Algéria... Parece que tenho a especialidade de me colocar em países que estão em processos de ditadura, depois cheguei ao Brasil, passa meia dúzia de anos e já estou vinte anos debaixo de outra ditadura... Sou muito sensível às relações do poder, do poder politico e do poder económico. Talvez as relações de poder sejam uma constante nos meus filmes e isso torna mais visível o lado político nos meus filmes. Mas acho que não conseguimos escapar de um olhar político em qualquer obra de arte.

17 - Já ganhou vários prémios internacionais, entre os quais um Urso de Prata no festival de Berlim pelo «Os Fuzis». Já fez todos os filmes que queria?

RG - Eu não. Eu fiz perto de 30 filmes, entre curtas e longa-metragens como realizador, depois fiz outros como editor, como guionista, como actor, mas isso foram momentos da minha trajectória, momentos de sobrevivência ou de prazer ou de aprendizagem. Por exemplo, acho que o facto de trabalhar como actor foi, para mim, uma aprendizagem para aplicar na direcção de actores nos meus filmes. Mas eu queria ainda fazer, pelo menos, mais uns seis filmes, porque fiz quinze longas-metragens e gostava de fazer vinte e uma, acho que é um número razoável. Pode ser que, daqui a pouco, aumente um pouco, se chegar rapidamente a dezoito pode ser que aumente o número de vinte e um. Eu também tinha decidido, há uns quinze anos atrás, que ia morrer com 116 anos. Fiz um cálculo daquilo que queria fazer na vida, inclusive com a minha carreira, que ainda não começou, de escritor, e calculei que 116 anos talvez desse para fazer aquilo que quero. Mas há 4 ou 5 anos atrás, corrigi esse número de 116 para 117. Mais um anozinho, que me pareceu ser mais realista no ponto de vista da trajectória que quero executar. Isto parece ser uma nota de humor, mas é principalmente um acto de vontade. Acho que, se você começa a encarar a vida olhando para a morte, começa a enfraquecer a sua criatividade, o ímpeto, as suas vontades e as suas energias começam a consumir-se. Então, eu prefiro colocar metas, mesmo que pareçam inatingíveis mas que não são inatingíveis, coloco como possíveis e com a certeza de que as vou executar, a não ser que haja um acidente inesperado. Tenho vários filmes que ainda quero fazer e o meu único orgulho, na área cinematográfica, talvez seja o de nunca ter feito um filme que nunca quisesse fazer. Sempre fiz os filmes que queria fazer e os que não queria fazer, não fiz. Prefiro não fazer nada, ficar longos períodos sem filmar mas não faço aquilo que não quero fazer. Para mim, o acto de fazer filmes, a partir do momento que o escolhi, é um acto sagrado, como fosse um crente ou religioso. É um acto de sentido da minha vida e o sentido da minha vida não pode ser conspurcado com momentos de fraqueza pessoal, simplesmente pelo desejo de filmar, pela vontade de estar num set de filmagens, pelo prazer das luzes e do encantamento dos mistérios do cinema, não é por isso que eu me vá sujar com um trabalho no qual eu não acredite. Então, esse talvez seja o meu lado puritano, mas não abro mão de não filmar aquilo que eu não acho que merece ser filmado. Estou sempre na esperança de conseguir filmar aquilo que desejo filmar e que é ainda muita coisa.

quinta-feira, 14 de julho de 2011



Alberto Dafonte é professor na Universidade de Vigo e o seu trabalho como investigador estende-se a temas como a televisão e seus mercados, novas plataformas, novos media, relação da televisão com o mercado publicitário, inovação, criatividade, entre outros.
Esteve na Universidade Lusófona para dar uma palestra intitulada 'A cadeia de valor da televisão em ambientes multi plataforma'.
Após a palestra tivemos com ele uma conversa sobre Televisão e Cinema, e o resultado está presente neste vídeo.

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Entrevista a João Canijo por André Agostinho e António Júlio Duarte

Como é que foste parar ao cinema, qual é a tua formação…

Eu descobri, isto é a pura das verdades, que queria ser realizador de cinema aos 12 anos porque o meu pai era médico, mas era cinéfilo, e foi um dos fundadores do Cineclube do Porto. Isto por um lado. Por outro lado, vivamos no Fascismo e, portanto, as pessoas minimamente intelectuais eram da oposição e implicadas politicamente. Por isso, havia uma motivação muito forte da parte dos pais para motivarem os filhos. Nós naquela época crescíamos mais depressa do que os miúdos agora. Por exemplo, eu saí do Partido Comunista aos 15 anos, por dissidências ideológicas. Parece muito precoce actualmente mas naquela altura não era. Eu tinha 10 anos quando foi o Maio de 68 e lembro-me perfeitamente de vibrar ao ver as imagens pela televisão. Da mesma maneira, havia filmes que não deveriam ser propriamente para a minha idade, eu via-os muito mais cedo do que os miúdos vêm agora. Sempre me interessei muito por cinema mas nunca descobri muito bem o que é que queria fazer nem o que é que me interessava. Quando tinha 12 anos, num atelier de construção de fantoches em pasta de papel, encenávamos um espectáculo com os ditos fantoches. Aquilo correu muito bem, foi um grande sucesso e eu fiquei muito satisfeito comigo. De maneira que passado muito pouco tempo inscrevi-me no Cineclube do Porto como sócio e ia todos os Domingos às 11h da manhã. Havia as sessões do Cineclube do Porto no cinema Batalha, e eu a partir dos 13 anos vi os filmes míticos que o Fascismo deixava passar. Mas como eram sessões de cineclube e a nossa censura era permeável para coisas que não fossem de massas, agente acabava por ver tudo. Depois veio o famoso 25 do 4 de 74, foi um turbilhão. Tinha 16 anos e aquilo foi uma violência muito grande para um miúdo de 16 anos. Foi descobrir um mundo novo, foi muito complicado. Eu fiz tantas asneiras que quando chegou a altura de entrar para a universidade não havia grandes hipóteses de ir fazer um curso de cinema lá fora. Acontece que o curso de cinema, na altura ainda Conservatório, abriu em 77, só que vivemos em Portugal, eu vivia no Porto, portanto o curso abriu e eu não sabia que ele existia. Aliás há uma anedota verdadeira que é: um produtor agora conceituado da nossa praça chamado José Mazeda, descobriu que havia o curso de cinema no Conservatório pelo jornal da tropa, quando estava na tropa. Os jornais da tropa tinham muita informação, eram bem feitos. Ele era de Trás-os-Montes, Mirandela, e veio para Lisboa para se inscrever no curso de cinema, que era o que ele queria fazer. Andou dois meses em Lisboa à procura do curso de cinema que não lhe sabiam dizer onde era o Ministério. Portanto, eu no Porto não tinha o jornal da tropa, não fazia ideia nenhuma. Nisto fui para História, que era a coisa assim mais parecida. Era um castigo que eu impus a mim mesmo, fazer um curso universitário para compensar a família das asneiras que tinha feito durante a revolução em curso. Andei três anos em História. Ao fim de três anos, com boas médias e tudo, achei que já tinha cumprido o castigo, e comuniquei à família que queria ir fazer cinema para Barcelona. Ora, o meu pai que não era parvo e estava farto dos meus disparates, disse “está muito bem, mas antes vais ver se é mesmo isso que queres fazer”. Acontece que o Sr. Oliveira [Manoel de Oliveira] era também fundador do Cineclube do Porto e portanto, era amigo do meu pai e estava a filmar a “Francisca”, e eu fui fazer de estagiário para a “Francisca”. E pronto, verifiquei que era aquilo que eu queria mesmo fazer. Eu já estava farto de saber mas pronto o meu pai ficou satisfeito e convencido. A seguir inscrevi-me no Conservatório, só que tive um grande azar. Azar porque tive que escolher no primeiro ano do Conservatório entre fazer o curso e ser assistente do Wim Wenders, 1981. Claro que escolhi ser assistente do Wim Wenders. Coisa que com o andar da idade, não foi se calhar o mais certo, porque assistente do Wim Wenders ou de outro parecido eu podia ter sido a seguir e acabei por não fazer o curso. Isso atrasou-me bastantes anos na minha conceptualização do que é filmar. Porque é fácil aprender como é que se faz, é muito difícil aprender porque é que se faz, e isso é que é o fundamental. Embora o Conservatório não seja um curso brilhante, obrigam-te a ver muitos filmes e a discuti-los, então acabas por aprender referencialmente porque é que se faz. Coisa que eu depois fiz por mim e que demorei muitos mais anos a fazer. É para isso que servem as escolas, para te darem os critérios de referência, não servem para mais nada. O como é que se faz é muito fácil.

Então foi mesmo importante o trabalho com o Manoel de Oliveira?

O trabalho com o Manoel de Oliveira foi muito importante até certa altura, até 1985. Eticamente o Manoel de Oliveira era das pessoas mais sérias que eu já conheci, e mais coerentes consigo próprias, independentemente de gostar ou concordar com o processo dele. Mas isso é a mesma coisa, tu podes não gostar do Picasso, podes embirrar com o Bacon, não estou a pôr o Manoel de Oliveira a esse nível, estou só a explicar. Há muitos fotógrafos que são bons fotógrafos e que tu não gostas.

Foi ao longo do tempo que descobriste a tua forma/conceito de fazer filmes.

Como forçosamente se vai descobrindo ao longo do tempo. Tu olhas para qualquer pintor ou para qualquer fotógrafo, as coisas que eles fazem no princípio não têm nada a ver com o que acabam por fazer no fim. O exemplo máximo é o Rothko que quando chegou aos pretos já não podia ir para mais lado nenhum e matou-se.

E se tivesses ficado na escola de cinema…

Tinha chegado lá mais depressa e de uma maneira mais fundamentada. Durante muito tempo por causa da minha formação exclusivamente prática e pragmática, via nos filmes como é que se fazia, isso era o mais simples. Só a partir dos 30 e tal anos é que comecei a ver nos filmes porque é que se fazia assim ou porque é que faziam. E isso demorou tempo.

E o teu método de trabalho?

O meu método de trabalho foi mudando e neste momento ando à procura, para além do método com os actores que esse está cada vez mais cristalizado e funciona muito bem comigo e com os meus actores. Não há métodos, há processos que se adaptam a projectos. Usar um método como uma coisa absoluta é um erro. Temos de ser sempre suficientemente flexíveis e receptivos para adaptar o nosso processo ao projecto e às pessoas que fazem parte desse projecto. Por exemplo, fiz agora uma encenação do Persona do Bergman, mas o que me interessou foi usar aquele filme como uma partitura. A ideia foi a reprodução da partitura, sabendo à partida que cada pessoa é uma pessoa, que cada actor é um actor e que, embora reproduzindo exactamente a partitura e com a partitura como pano de fundo, a interpretação das miúdas em palco ia ser outra coisa, um objecto diferente, do que o filme em si, independentemente do meio. Podias filmá-las a fazer exactamente as mesmas coisas e ia ser outra coisa. Era usar o filme para uma partitura. Depois com uma outra formalidade que me interessa também que é a dispersão, que é o não canalizar, o não orientar a atenção e a percepção do espectador, deixá-lo fazer a sua própria representação. Então, podias usar a peça como legendagem do filme, o filme como décor da peça ou juntar as duas coisas e transformar aquilo numa terceira coisa, numa representação do Persona em dois níveis. E isso foi o que me interessou, só por isso é que eu quis fazer a peça.

Como trabalhas com os actores?

Cada vez mais é chupar-lhes o sangue, aparentemente é um trabalho em conjunto com eles mas, no fundo, o que eu faço é sugar tudo o que eles têm para dar, cozinhar e devolver. Não é tão vampiresco quanto isso porque é um trabalho também muito profundo deles e que lhes é muito útil para o resultado final, para além de lhes ser muito agradável trabalhar assim. Em vez de lhes estar a impor, estar-se a tentar encontrar um ponto de confluência, um ponto de encontro. Claro que eles não fazem a mínima ideia do grau de manipulação que utilizo e é muito simples. Vem a partir do momento em que eu gravo as sessões e depois transcrevo das sessões aquilo que me interessa. Quando eu lhes devolvo um papel escrito, o papel escrito já não são as sessões deles, já são o meu ponto de vista sobre aquelas sessões. E assim consecutivamente até chegarmos ao argumento final que é muito mais o meu ponto de vista do que o deles.

Eles sabem que tu fazes essas manipulações?

Sabem mas nunca têm a noção do grau. É tão simples quanto isto, da mesma maneira que não podes impor uma interpretação a um actor, também não podes saber o que é que lhe vai dentro da cabeça. Nunca vais saber o que é que lhe vai dentro da cabeça. Como é que eles podem alguma vez saber o que é que vai dentro da minha cabeça? Sei lá o que é que tu estás a pensar. Sabes o que é que eu estou a pensar? A graça é essa, é imaginares o que é que eu estou a pensar, é o esconder o visível para mostrar o invisível. É muito mais interessante dares a possibilidade ao espectador de imaginar o que é que o actor está a sentir, do que espetar-lhes, pespegar-lhe completamente o que o actor está a sentir, De uma maneira linear.

Há pouco dizias que não há um método, mas usas esse método ou processo, para todos os teus filmes?

Sempre usei e agora está cada vez mais sedimentado, mas não quer dizer que seja um

método, porque eu adapto-me aos actores que tenho, com uns funciono de uma maneira,

com outros funciono de outra. Por exemplo, no documentário [Trabalho de Actriz,

Trabalho de Actor], quando me perguntaram se eu os obrigava a fazer a biografia do

personagem, a história passada do personagem, porque é que são e porque é que não

são… a Teresa Madruga que tem 60 anos chegou à sessão dela, em que me ia explicar o

personagem, e onde eu estava a preparar-me para debater com ela o personagem e

obrigá-la a convencer-me da personagem, ela chegou e tirou umas colunas dentro de um

saco, ligou um gravador às colunas, sentou-se e ligou o gravador. Tinha estado até às

quatro da manhã a gravar a personagem, e vinha vestida em personagem e penteada em

personagem. O que ela pôs a andar eram 2h30 de história da personagem, gravado com

a voz da personagem. Portanto, adaptas-te.

E aí o que é que fazes a seguir?

É não fazer nada! Deixei e aproveitei o que eu quis.

Obrigavas a pará-la quando te surgiam questões?

Não. Aí não questionei nada. Limitei-me a pôr a câmara a filmá-la, a ela e à coluna, que é uma das partes boas do documentário, e depois na transcrição aproveitei o que eu quis. Isto foi a discussão da personagem, depois na discussão das cenas sim, mas a personagem era a personagem dela.

Utilizas actores profissionais e actores não profissionais.

Tal como o Rothko dizia que gostava de chegar à emoção pura, eu gostava de chegar ao ponto em que não se percebesse num filme meu de ficção se era um documentário ou se era um filme de ficção. Cada vez tenho mais a noção que é isso que eu quero fazer, por isso é que disse que quando descobri o sistema e o que quero, é assumir que a partir de agora se calhar não vou fazer mais filmes. Por acaso isso aconteceu um bocadinho no Ganhar a Vida porque não tinha actores portugueses em França para fazerem as emigrantes, de maneira que fui buscar e fiz casting. E aconteceu no Noite Escura mas já de uma maneira mais consciente porque não havia maneira de transformar personagens secundárias em personagens muito consistentes se não usasse as próprias meninas da noite. Portanto fiz um grande trabalho de recolha de meninas da noite e fiz o casting a algumas. Mas no fundo não precisei de fazer muito casting, fiz casting às personalidades mais do que à capacidade de representar, porque elas representam-se a si próprias. Neste último filme [Sangue do Meu Sangue] não é bem usar actores e não actores, são todos actores mas cheguei a um ponto, por causa deste trabalho, em que há uma grande parte do filme em que não se percebe que eles são actores e que fazem parte daquele bairro. Porque a improvisação e o naturalismo, ou seja, uma pessoa fazer de si própria e representar-se a si própria, não tem pensamento, não tem elaboração mental, não tem interpretação, e o que interessa na arte é a interpretação, é a representação abstracta daquilo que se faz. É muito simples, o exemplo das pinturas dos bisontes das grutas de Alta Mira, tudo são símbolos, quando falamos são símbolos, são sempre metáforas. Aqueles bisontes são uma metáfora feita por aquele senhor a representar uma realidade que ele conhecia. Para além disso, era uma metáfora provavelmente mágica ou religiosa, ou seja, já é o segundo nível, a representação da cena real de caça, é ao mesmo tempo uma representação mitológica, simbólica de pedido de favores aos deuses. Quando tu as vês agora, já fazes uma representação absolutamente diferente, não consegues fazer a representação mitológica, o pedido de favor, tens que fazer uma representação imaginada da cena real de caça. E independentemente disso, as pinturas são bonitas e emocionam-te só por si. Isto é que é a arte.

Essa fusão do real e da ficção não te prejudica? Usar actores profissionais?

É mesmo essa a intenção. Acho muito mais interessante ter um actor, desde que seja inteligente e talentoso, a interpretar uma pessoa real, a disfarçar-se de pessoa real que não é ele, embora seja, porque os actores também nunca deixam de ser eles próprios, não há essa coisa da transformação. Há uma anedota que é: a Rita a certa altura deu um workshop que lhe correu bastante mal. Ela não levava nada preparado e na primeira aula começou a perguntar aos meninos e às meninas porque é que queriam ser actores, e houve uma menina, estúpida, que disse: – “ai a mim o que me interessa é a transformação”. – “E o que é que queres dizer com isso?”, – “É assim pah, é como naquele filme d’As Horas.” E a Rita parou um bocadinho e disse – “Ah! Estás a falar de narizes?” Percebeste? Um actor é sempre ele próprio. Dizem que o Robert DeNiro é sempre igual a ele próprio, e é, forçosamente não pode ser igual a outro. Faz são papéis diferentes e personagens diferentes, mas são sempre feitos por ele. Portanto, o que me interessa é que os actores interpretem o meio onde eu os coloco e o façam à sua maneira, é a visão deles daquele meio. E se a visão deles for genuína e trabalhada é tão concreta como uma pessoa real e mais interessante porque é uma interpretação.

Escreves pensar nos actores?

E com eles. E sempre escrevi a pensar neles. Sempre. A única excepção foi os “Sapatos pretos” que foi uma história real, de resto foi sempre a pensar neles.

E a história surge-te quando estás na escrita do guião ou já tens uma ideia preconcebida?

Durante bastante tempo usei uma facilidade, como não tenho grande jeito para escrever histórias, eu não sou escritor, aproveitei-me muito dos gregos porque estão lá os arquétipos todos dos personagens ocidentais, da nossa civilização. Não são dos Indianos nem dos Japoneses, porque as civilizações são diferentes, portanto os arquétipos são outros, mas da nossa civilização judaico-cristã estão lá os arquétipos todos. E estão as histórias primordiais todas. Foi por isso, por uma questão de facilidade por um lado, e por outro há uma razão pessoal profunda e psicanalítica, que é o meu interesse desde sempre tanto pela Elecktra como pelo Hamlet, sendo que o Hamlet é uma versão da Elecktra. A história da Elecktra sempre me interessou profundamente e a trilogia do Noite Escura que acaba no Mal Nascida, faltando-lhe a posta do meio, foi só feita com um fim, que era chegar à Elecktra.

Qual seria o filme e ainda pensas fazer o filme que falta da trilogia?

Precisava de me transformar numa vedeta internacional porque o filme corresponde à conspiração da Clitemnestra contra o marido, quando o marido está na guerra de Tróia, de onde é uma adaptação do Agamenon do Ésquilo e da Ilíada, onde tem 20 e tal actores que são aqueles que entram na Tróia do Brad Pitt. E passava-se como é lógico actualmente, passar-se-ia, porque Tróia também foi uma guerra económica e de poder económico, no crime organizado em Espanha.

Mas tens o filme todo?

Não, o filme está escrito mas sempre foi para ser completamente adaptado à realidade, tenho um dossier de centenas de páginas sobre o crime organizado europeu. E não só, porque há ramificações. Mas tinha de ser todo reescrito em função do que fosse encontrar em Espanha, tinha que ir para lá. Mas principalmente tem cerca de 20 actores, dois terços espanhóis e um terço “tugas”, seria uma família “tuga” que já lá estava. E é caríssimo, não são propriamente as cenas de acção, que isso até se resolve, são os 20 e tal actores. Como todos os personagens, não podes transformar o Ulisses num personagem absolutamente secundário. O Ulisses na Ilíada, não é só o Ulisses.

Os teus filmes têm sempre a ver com o que chamam o país real. Geralmente são temas mais do documentário do que da ficção. A ficção portuguesa muitas vezes parece afastada do real.

Mas porque a ficção portuguesa em geral não é boa. Se fosse boa tinha sempre a ver com o país real, porque agente tem de falar daquilo que conhece e daquilo que nos diz respeito. Como é que eu podia fazer um filme num país que eu adoro à distância que é a Nova Zelândia? O que é que eu sei dos Maori? O que é que eu sei da relação dos Maori com os brancos que foram para lá? Não sei coisíssima nenhuma! Como é que eu podia fazer um filme na Nova Zelândia? A não ser que fosse para lá uns anos antes. E será que aquela realidade me ia interessar e me ia dizer alguma coisa? Eu tenho décadas de formatação à realidade portuguesa, odiando-a ou não, tenho décadas de formatação, é o que eu conheço, agente só pode falar daquilo que conhece. Mesmo o Fernando Pessoa falando e contando uma história abstracta, não há mais português que aquele. E é uma ideia fundamental que eu descobri há pouco tempo, uma metáfora. No fundo a metáfora é uma abreviatura, é uma concisão daquilo que agente chama a representação abstracta. E a metáfora é sempre mais poderosa do que a não metáfora. Um exemplo de uma metáfora, “está a chover muito” ou “está a chover a cântaros”, qual é que é mais poderoso? Embora seja uma metáfora já completamente de entrada no léxico é “está a chover a cântaros”. A metáfora é sempre mais poderosa. E na montagem, aquilo onde eu quero chegar agora, é o plano seguinte ser uma metáfora do anterior, ou seja, já é a metáfora da metáfora porque o primeiro já é metáfora.

É outra das tuas características esse grande trabalho de investigação.

Mas isso é o feito do diletantismo que a irresponsabilidade portuguesa permite. Não podes escrever porra nenhuma em condições sem conheceres a realidade que estás a tratar. Não é por acaso que o Guillermo Arriaga diz que agora que tem mais prática só demora dois anos e meio a escrever um argumento. Só um ano e meio é ir para o local escrever a coisa em condições. Sendo, ainda por cima, sítios que ele já conhece, onde cresceu, o que não o impede de fazer a investigação.

As tuas personagens mulheres são sempre personagens fortes.

São sempre fortes porque eu nunca arranjei um gajo que se comparasse à Rita Blanco quando tinha 18 anos, nada, não havia, não tinha. Nunca arranjei gajos que pudessem ser personagens tão fortes como a gaja. Só agora, neste último filme é que descobri um gajo que eu já sabia, mas do qual eu tinha um bocado medo por ser doido e por ser muito do método, eu não queria muito do método, o único tipo que eu consegui agora que é tão generoso como a gaja foi o Nuno Lopes. O único em 30 anos de carreira.

Há algum denominador comum nos teus filmes?

Durante algum tempo foi a raiva ao país.

Nos teus filmes o espaço tem um papel importante, por vezes é claustrofóbico, as pessoas estão encurraladas, como por exemplo no Noite Escura.

Eram defeitos que eu fui limando. Mas a ideia não nasceu do espaço ser fechado. Nós nunca vivemos com os outros e nunca vemos o que é que se passa, é isso que é interessante no filme e na arte, mostrar partes que as pessoas não vêem, mostrar sem mostrar. E onde é que uma tragédia podia passar mais desapercebida? Numa casa de putas que é uma mentira, onde elas representam o tempo todo, tanto elas como os clientes e ninguém ia reparar em tragédia nenhuma. A ideia era envolver, sempre foi, já nessa altura era, agora as coisas estão mais claras na minha cabeça, era envolver a tragédia num nevoeiro de sordidez, e não se perceber muito bem o que é que era mais importante, se a sordidez se a tragédia.

Como é que vês o papel da câmara no filme?

O papel da câmara é um instrumento que serve para esconder. Já dizia o Renoir, “é tão importante o que está fora de campo como o que está dentro de campo”, às vezes é mais.

O som nos teus filmes é muito bem trabalhado e pensado. Por exemplo, no Noite Escura em que há uma sobreposição de conversas constante.

Exactamente. Quando estás na vida tens que seleccionar aquilo que queres ver e és distraído, e a tua representação abstracta é condicionada pelo teu interesse. Não tem de ser forçada. É como dizia o Schopenhauer, o que é que é a representação abstracta? O exemplo dele é claríssimo e nunca encontrei melhor: a nuvem. Quando olhamos para uma nuvem, nenhum de nós vê a mesma coisa na nuvem, e nenhum de nós está a ver aquela nuvem. A nuvem em si é um conceito, não é isso que agente está a ver, agente está a fazer uma representação da nuvem. Tão simples, eu vejo um cavalo, tu vês um coelho, ou tu vês uma coisa poética e eu vejo uma coisa dramática. Mas nenhum de nós está a olhar para as gotas de água condensadas, pois não?

O som fora de campo é muitas vezes mal explorado.

Um dos choques do cinema mundial do uso do som fora de campo é o princípio do The Sraight Story do David Lynch, em que está o velho e a filha a falar ao telefone. É dos melhores papéis que alguma vez a Sissy Spacek fez na vida e tu quase que não a vês. Vê-la num plano assim de repente e está lá tudo. É um exemplo do que tu podes fazer com a sinceridade e a genuidade dos actores, é que ela esforçou-se como “oh carago” e tu não a vês, mas o que é certo é que está lá o esforço dela, está lá tudo, é fantástica.

Antigamente dizia-se muito mal do som dos filmes portugueses.

Ainda hoje há esse mito. O som dos filmes portugueses não era brilhante mas não era pior que os outros. O que acontecia é que nos filmes estrangeiros tinhas as legendas e tu tinhas a noção, porque lias automaticamente, mesmo sem querer lias as legendas. Ao leres as legendas percebes tudo o que eles estão a dizer na língua estrangeira e ficas com a noção de que o som é melhor do que o nosso. Era um bocadinho melhor que o nosso mas se experimentasses fechar os olhos? É que não percebias um corno.

Foste uma das primeiras pessoas a passar para o digital.

Não foi de propósito, foi adaptar aos meios que havia.

Mesmo depois quando fazes o Ganhar a vida?

Aí já foi de propósito porque gostámos do que tinha-mos feito nos Sapatos pretos.

Achas importante trabalhar sempre com a mesma equipa técnica?

Acho que sim. É como com os actores, vais criando afinidades e vais criando uma equipa que já são amigos, que nos entendemos quase sem falar. Também há uns que vão sendo eliminados, mas os que ficam é um corpo, até agente se zangar porque depois isso acontece como nas companhias de teatro, funcionam durante um tempo, depois as relações humanas, os egos e as coisas, a certa altura acaba.

Fala-se muito de criar uma indústria em Portugal, qual é a tua opinião sobre isto?

Basta olhar para os números e para o tamanho do país para perceber que nunca poderá, nunca houve, nem nunca vai haver uma indústria em Portugal porque o país não tem tamanho para isso. Não tem um mercado para poder rentabilizar o produto em função do mercado. Ter a veleidade, a astúcia de querer rentabilizar um produto comercial tuga internacionalmente seria quadruplicar ou quintuplicar o valor de produção do filme para poder ser concorrencial com o valor de mercado do filme Francês, do filme Espanhol, do filme Italiano. Sendo que, basta ter dois dedos de testa e pensar, quais são os filmes comerciais franceses, italianos e espanhóis que estrearam em Portugal. Tirando os mega sucessos como o Bem-vindo ao Norte mas que não foi um mega sucesso em Portugal. Quais foram os filmes mega sucessos espanhóis que estrearam em Portugal?

O Cela 211.

E foi um sucesso, não foi? O Mar Adentro do Aménabar foi um sucesso relativo em Portugal mas contam-se pelos dedos. Os espanhois fazem 120 filmes por ano, grandes sucessos. Tu sabes, por exemplo, o que é o Torrente?

Não.

É uma série de filmes espanhóis, dez milhões de espectadores cada um. Uma espécie do Esteves detective. Vai no quatro. Dez milhões cada um. É uma espécie de Duarte e Companhia bom, com um detective fascista, franquista, absolutamente burgesso, uma espécie de Herman, com um gajo que é uma vedeta. Queres criar uma indústria aonde? Mas sabes quem é o Brillant Mendonza não sabes?

Sim.

Achas que o Brillant Mendonza é um sucesso nas Filipinas? Não é. Os números estão aqui a dizer, os números não são inventados. Basta pensares que o Avatar fez um milhão e duzentos mil espectadores. Achas que isso é muito? Para Portugal é muito. Mas em termos de rentabilização de algum produto é muito? Não é. Um milhão e duzentos mil espectadores dava exactamente para o produtor, um milhão e duzentos mil. Mesmo que o produtor não tivesse gasto um tusto, que é o caso em Portugal, ficava com esse milhão e duzentos mil para reinvestir num filme. Achas que um milhão e duzentos mil é dinheiro para fazer uma super produção que tenhas a certeza que vais rentabilizar a seguir? Um filme que eu fiz agora custou à volta de um milhão e o Pedro está à rasca para pagar os juros dos empréstimos que teve de pedir para o filme se poder fazer, porque o ICA paga atrasado como é normal. Isso é uma das funções do produtor, é pedir o empréstimo sobre o contracto do ICA, mas depois tem de pagar os juros.

E sociedades privadas?

Um milhão e duzentos mil…achas que há bancos ou sociedades privadas que vão investir nesta rentabilidade extraordinária? Sendo que um milhão e duzentos mil é o Avatar, porque os números portugueses são outros, são os 380 mil do Crime do Padre Amaro.

Porque é que achas que há rivalidade entre o cinema de autor e o cinema comercial.

Porque é uma rivalidade que não faz sentido nenhum e tem a ver com interesses particulares dos velhos, tem a ver com senhores que se julgavam da Nouvelle Vague e que nunca lá chegaram. Limitaram-se a fazer umas coisas que não foram a festivais importantes e a fazer uns sucessos de trazer por casa. De maneira que, naturalmente e pessoalmente, começaram a valorizar esses sucessos de trazer por casa e a menosprezar os sucessos internacionais, por relativos que sejam, não percebendo que da diversidade e da quantidade é que nasce a qualidade. Começaram também a defender a ideia de que para se fazer um filme de sucesso comercial, esse filme tem de ser feito com mais dinheiro do que os outros. Eu respondo o contrário, porque se é assim um sucesso comercial tão grande para que é que precisam de dinheiro do Estado? Se é assim uma coisa tão boa e que vai render tanto, precisa de muito menos dinheiro do Estado. Com certeza que arranja investimentos privados. Só que o investimento privado em Portugal dá, por forças das circunstâncias, porque não há dinheiro para fazer melhor, dá as telenovelas da TVI. Essas sim, são de facto rentáveis, mas são feitas ao preço da uva mijona como tu sabes. As condições de produção são miseráveis, fazem vinte e tal cenas por dia, quando não são mais, aí sim. Então façam como os senhores da TVI, a ver se conseguem fazer melhor que eles, e isso sim é o produto industrial português, é o possível. Já nem os brasileiros fazem assim porque têm muito mais dinheiro.

Mas o cinema português de autor é muita mau. É que são maus uns como os outros.

O que é que é o cinema de autor para ti?

Cinema de autor é só tu teres uma ideia, seres justo, seres sério com essa tua ideia, em relação a ti próprio, e tentar levá-la até ao fim segundo os teus princípios. Como o grande exemplo é o Sr. Oliveira

O Que achas do César Monteiro?

O César Monteiro é outra coisa, isso não tem nada a ver. O César Monteiro não acho que fosse um cineasta, acho que era um personagem, como personagem era genial, era muito inteligente e menos maluco que aquilo que parecia, ou que queria fazer parecer. Dava-lhe um bocadinho na bebida, dependia dos momentos, era muito inteligente e construiu uma persona. Mas a persona nunca ultrapassava certos limites porque sabia que para isso era preciso ter alguma caução cultural em cada filme que fazia. Aconteceu que, num filme, ele emborrou-se tanto que perdeu o bloqueio da caução cultural, e esse filme é genial do princípio ao fim que é a Comédia de Deus. Começavam a filmar às 8h da manhã e às 8h30 paravam porque o realizador tinha literalmente caído para o lado. E nesse filme, derivado ao estado, ele não tinha os bloqueios, não tinha os constrangimentos da caução cultural e o filme não os tem.

O cinema português está a tentar tornar-se mais americano?

Está em alguns casos, depende. Uma primeira obra portuguesa chamada Body Rice que não tem nada a ver com o americano, mas é uma excepção. Depois os outros acham que sim.

Hoje em dia olhamos para as salas portuguesas e há dois, três documentários em exibição. Vês uma razão prática para isso, o custo mais baixo? Maior apetência por parte das pessoas?

As pessoas antes não iam ver documentários porque os documentários não estreavam. Os documentários também não estreavam porque os documentários não se faziam. Porque isso foram evoluções feitas nos últimos anos em que as coisas melhoraram muito, agora vão piorar muito. Não havia concursos para documentários e não havendo não havia documentários. Só eram produzidos pela RTP, eram umas coisas feitas sem dinheiro nenhum e, portanto, não se faziam documentários. Neste momento, fazem-se mais documentários que filmes porque o dinheiro não é comparável, enquanto que num filme numa primeira obra tens 450 mil euros, para um documentário tens no máximo 80 mil.

Achas que pode ter a ver com o sucesso do Michael Moore?

Não porque há coisas muito mais interessantes que essas. O custo, aí sim, a relação custo-rentabilidade do documentário quando ele funciona não tem nada a ver. Uma coisa que custa 90 mil euros e que te faz 20 mil espectadores é muito diferente. Faz 20 mil euros para o produtor, é muito diferente. Com 20 mil euros podes lançar o próximo documentário. E para as salas então… não custa nada, nem para os distribuidores, porque há o preço de venda à distribuição. Eu não sei os preços dos filmes mas é normal um filme de sucesso médio internacionais custar entre os 50/60 mil euros para a distribuição em Portugal. Para isso tinham de fazer 300 mil espectadores, não é verdade? Mas depois a coisa é compensada, às vezes é à percentagem, depois é compensada com os DVD´s, com as vendas à RTP ou às televisões portuguesas, aos cabos. É aí que tu vais buscar o resto, não é na sala que tu rentabilizas.

E o caso do Fantasia Lusitana?

Este documentário foi caro porque as imagens são caras. Mas o documentário teve os 80 mil do ICA, mais 20% disto dá 16 mil da RTP, depois teve à volta de 50 mil da câmara de Cascais e não sei se teve algum da câmara de Lisboa. Portanto ainda teve bastante dinheiro. De qualquer maneira já vendeu um horror de DVD´s, à volta de 10 mil e fez 5 mim espectadores nas salas.

Não estavas à espera de um sucesso destes.

Não, foi o meu maior sucesso relativo desde sempre, porque só estreou numa sala.

Quando fazes um filme pensas nas reacções do público?

Não, não. Evidente que faço o filme em função do público, não faço o filme de uma maneira autista. Mas a principal preocupação é fazer uma coisa da qual eu pessoalmente acho que é séria e que corresponde à intenção inicial que eu tenho. Porque forçosamente se isso tudo for sério, a reacção do público irá ser boa. Não faço rigorosamente nada, não faço concessão nenhuma à reacção nem de riso nem de choro do público, não faço concessão nenhuma em relação a uma possível adesão do público. Até porque não há público, há públicos, e portanto não sei qual é o público. De certeza que não é o público das telenovelas da TVI que vai gostar dos meus filmes, mas isso eu também não estou interessado em fazer. A partir do momento em que pensas no público, tens de ser forçosamente ilustrativo, tens de fazer uma coisa entendível e absolutamente entendível e só de uma maneira à primeira vista pelo público em geral. Isso é forçosamente ilustrativo, é o contrário da arte, é uma ilustração, ilustração não quero fazer. Já nem sei fazer, já soube. É respeitar os eixos e outras coisas assim, demorei muitos anos a aprender que as regras são para se desrespeitar e saber como as desrespeitar, para agora voltar para trás.

Tentaste transmitir alguma mensagem quando fizeste o documentário?

Não, se passares uma emoção, forçosamente passas alguma coisa. É tão simples quanto isto, basta pô-los em oposição com os outros e tens um retrato do fascismo. Não é preciso ser didáctico e de pôr ainda por uma voz a dizer “atenção mas isto é muito mau; estes senhores eram muito perigosos”. Não é preciso, está lá. A mensagem está sempre dentro de ti, é o que tu sentes.

Este documentário põe-me deprimido.

Embora te fartes de rir. Exactamente porque as coisas ainda não são tão diferentes. Mas eu também não precisei de explicar que as coisas não mudaram assim tanto. Está no filme. Desde que tu faças as coisas de uma maneira que é profundamente interessante para ti, a mensagem acaba por lá estar, não é preciso escolher uma mensagem, isso acaba por ser redutor, se escolhes uma mensagem é redutor. O conceito não, mas ter a mensagem como conceito é redutor.

Que realizadores tens como referência?

O Mizoguchi e o Ozu, e um que eu adoro, foi assistente deles, é o Imamura. Quando era miúdo o Ford, como é lógico, e o Hawks. Odeio o Bresson. Quando eu comecei a aprender porque é que se faziam filmes foi com o Cassavetes, depois percebi que os chineses vêm todos do Cassavetes. E neste momento gosto imenso do Brillant Mendoza porque faz um bocado aquilo, mas muito melhor porque pode, aquilo que eu fiz no Noite Escura. Ele tem uns gajos contratados nas ruas de Manila que lhe vão trazendo histórias todos os dias, ele paga para lhe trazerem histórias e a partir daí é que ele escreve os argumentos, o que é genial. Mas em Portugal não tens dinheiro para isso, se calhar é possível mas… Depois... claro que o Eisenstein. Revi O Couraçado Potemkin, continua a ser uma lição magistral de montagem. A cena da escadaria não é por acaso que é dada nas escolas, achas que eu percebi quando era puto? Não percebi nada! Estúpido! Só percebi agora, por isso é que fez falta a escola. É uma lição magistral de montagem, magistral, magistral! É o plano seguinte ser a metáfora do anterior, está lá tudo, tudo! Os bons filmes do Bergman são intemporais, absolutamente, e tem coisas... elipses com falta de racord, feitas em 66 dentro da cena, dentro do plano e tu comes aquilo tudo porque aquilo não se nota, e o que se nota é a metáfora da metáfora. Depois o ‘4 meses, 3 semanas e 2 dias’ do romeno, vi muito esse filme porque quanto mais o vejo menos defeitos lhe encontro. A actriz que é Ana Maria Marinca diz que “ser actor é tirar todas as máscaras e ser mais real do que na vida”, é representar menos do que na vida e é verdade.