segunda-feira, 4 de julho de 2011

Entrevista a João Canijo por André Agostinho e António Júlio Duarte

Como é que foste parar ao cinema, qual é a tua formação…

Eu descobri, isto é a pura das verdades, que queria ser realizador de cinema aos 12 anos porque o meu pai era médico, mas era cinéfilo, e foi um dos fundadores do Cineclube do Porto. Isto por um lado. Por outro lado, vivamos no Fascismo e, portanto, as pessoas minimamente intelectuais eram da oposição e implicadas politicamente. Por isso, havia uma motivação muito forte da parte dos pais para motivarem os filhos. Nós naquela época crescíamos mais depressa do que os miúdos agora. Por exemplo, eu saí do Partido Comunista aos 15 anos, por dissidências ideológicas. Parece muito precoce actualmente mas naquela altura não era. Eu tinha 10 anos quando foi o Maio de 68 e lembro-me perfeitamente de vibrar ao ver as imagens pela televisão. Da mesma maneira, havia filmes que não deveriam ser propriamente para a minha idade, eu via-os muito mais cedo do que os miúdos vêm agora. Sempre me interessei muito por cinema mas nunca descobri muito bem o que é que queria fazer nem o que é que me interessava. Quando tinha 12 anos, num atelier de construção de fantoches em pasta de papel, encenávamos um espectáculo com os ditos fantoches. Aquilo correu muito bem, foi um grande sucesso e eu fiquei muito satisfeito comigo. De maneira que passado muito pouco tempo inscrevi-me no Cineclube do Porto como sócio e ia todos os Domingos às 11h da manhã. Havia as sessões do Cineclube do Porto no cinema Batalha, e eu a partir dos 13 anos vi os filmes míticos que o Fascismo deixava passar. Mas como eram sessões de cineclube e a nossa censura era permeável para coisas que não fossem de massas, agente acabava por ver tudo. Depois veio o famoso 25 do 4 de 74, foi um turbilhão. Tinha 16 anos e aquilo foi uma violência muito grande para um miúdo de 16 anos. Foi descobrir um mundo novo, foi muito complicado. Eu fiz tantas asneiras que quando chegou a altura de entrar para a universidade não havia grandes hipóteses de ir fazer um curso de cinema lá fora. Acontece que o curso de cinema, na altura ainda Conservatório, abriu em 77, só que vivemos em Portugal, eu vivia no Porto, portanto o curso abriu e eu não sabia que ele existia. Aliás há uma anedota verdadeira que é: um produtor agora conceituado da nossa praça chamado José Mazeda, descobriu que havia o curso de cinema no Conservatório pelo jornal da tropa, quando estava na tropa. Os jornais da tropa tinham muita informação, eram bem feitos. Ele era de Trás-os-Montes, Mirandela, e veio para Lisboa para se inscrever no curso de cinema, que era o que ele queria fazer. Andou dois meses em Lisboa à procura do curso de cinema que não lhe sabiam dizer onde era o Ministério. Portanto, eu no Porto não tinha o jornal da tropa, não fazia ideia nenhuma. Nisto fui para História, que era a coisa assim mais parecida. Era um castigo que eu impus a mim mesmo, fazer um curso universitário para compensar a família das asneiras que tinha feito durante a revolução em curso. Andei três anos em História. Ao fim de três anos, com boas médias e tudo, achei que já tinha cumprido o castigo, e comuniquei à família que queria ir fazer cinema para Barcelona. Ora, o meu pai que não era parvo e estava farto dos meus disparates, disse “está muito bem, mas antes vais ver se é mesmo isso que queres fazer”. Acontece que o Sr. Oliveira [Manoel de Oliveira] era também fundador do Cineclube do Porto e portanto, era amigo do meu pai e estava a filmar a “Francisca”, e eu fui fazer de estagiário para a “Francisca”. E pronto, verifiquei que era aquilo que eu queria mesmo fazer. Eu já estava farto de saber mas pronto o meu pai ficou satisfeito e convencido. A seguir inscrevi-me no Conservatório, só que tive um grande azar. Azar porque tive que escolher no primeiro ano do Conservatório entre fazer o curso e ser assistente do Wim Wenders, 1981. Claro que escolhi ser assistente do Wim Wenders. Coisa que com o andar da idade, não foi se calhar o mais certo, porque assistente do Wim Wenders ou de outro parecido eu podia ter sido a seguir e acabei por não fazer o curso. Isso atrasou-me bastantes anos na minha conceptualização do que é filmar. Porque é fácil aprender como é que se faz, é muito difícil aprender porque é que se faz, e isso é que é o fundamental. Embora o Conservatório não seja um curso brilhante, obrigam-te a ver muitos filmes e a discuti-los, então acabas por aprender referencialmente porque é que se faz. Coisa que eu depois fiz por mim e que demorei muitos mais anos a fazer. É para isso que servem as escolas, para te darem os critérios de referência, não servem para mais nada. O como é que se faz é muito fácil.

Então foi mesmo importante o trabalho com o Manoel de Oliveira?

O trabalho com o Manoel de Oliveira foi muito importante até certa altura, até 1985. Eticamente o Manoel de Oliveira era das pessoas mais sérias que eu já conheci, e mais coerentes consigo próprias, independentemente de gostar ou concordar com o processo dele. Mas isso é a mesma coisa, tu podes não gostar do Picasso, podes embirrar com o Bacon, não estou a pôr o Manoel de Oliveira a esse nível, estou só a explicar. Há muitos fotógrafos que são bons fotógrafos e que tu não gostas.

Foi ao longo do tempo que descobriste a tua forma/conceito de fazer filmes.

Como forçosamente se vai descobrindo ao longo do tempo. Tu olhas para qualquer pintor ou para qualquer fotógrafo, as coisas que eles fazem no princípio não têm nada a ver com o que acabam por fazer no fim. O exemplo máximo é o Rothko que quando chegou aos pretos já não podia ir para mais lado nenhum e matou-se.

E se tivesses ficado na escola de cinema…

Tinha chegado lá mais depressa e de uma maneira mais fundamentada. Durante muito tempo por causa da minha formação exclusivamente prática e pragmática, via nos filmes como é que se fazia, isso era o mais simples. Só a partir dos 30 e tal anos é que comecei a ver nos filmes porque é que se fazia assim ou porque é que faziam. E isso demorou tempo.

E o teu método de trabalho?

O meu método de trabalho foi mudando e neste momento ando à procura, para além do método com os actores que esse está cada vez mais cristalizado e funciona muito bem comigo e com os meus actores. Não há métodos, há processos que se adaptam a projectos. Usar um método como uma coisa absoluta é um erro. Temos de ser sempre suficientemente flexíveis e receptivos para adaptar o nosso processo ao projecto e às pessoas que fazem parte desse projecto. Por exemplo, fiz agora uma encenação do Persona do Bergman, mas o que me interessou foi usar aquele filme como uma partitura. A ideia foi a reprodução da partitura, sabendo à partida que cada pessoa é uma pessoa, que cada actor é um actor e que, embora reproduzindo exactamente a partitura e com a partitura como pano de fundo, a interpretação das miúdas em palco ia ser outra coisa, um objecto diferente, do que o filme em si, independentemente do meio. Podias filmá-las a fazer exactamente as mesmas coisas e ia ser outra coisa. Era usar o filme para uma partitura. Depois com uma outra formalidade que me interessa também que é a dispersão, que é o não canalizar, o não orientar a atenção e a percepção do espectador, deixá-lo fazer a sua própria representação. Então, podias usar a peça como legendagem do filme, o filme como décor da peça ou juntar as duas coisas e transformar aquilo numa terceira coisa, numa representação do Persona em dois níveis. E isso foi o que me interessou, só por isso é que eu quis fazer a peça.

Como trabalhas com os actores?

Cada vez mais é chupar-lhes o sangue, aparentemente é um trabalho em conjunto com eles mas, no fundo, o que eu faço é sugar tudo o que eles têm para dar, cozinhar e devolver. Não é tão vampiresco quanto isso porque é um trabalho também muito profundo deles e que lhes é muito útil para o resultado final, para além de lhes ser muito agradável trabalhar assim. Em vez de lhes estar a impor, estar-se a tentar encontrar um ponto de confluência, um ponto de encontro. Claro que eles não fazem a mínima ideia do grau de manipulação que utilizo e é muito simples. Vem a partir do momento em que eu gravo as sessões e depois transcrevo das sessões aquilo que me interessa. Quando eu lhes devolvo um papel escrito, o papel escrito já não são as sessões deles, já são o meu ponto de vista sobre aquelas sessões. E assim consecutivamente até chegarmos ao argumento final que é muito mais o meu ponto de vista do que o deles.

Eles sabem que tu fazes essas manipulações?

Sabem mas nunca têm a noção do grau. É tão simples quanto isto, da mesma maneira que não podes impor uma interpretação a um actor, também não podes saber o que é que lhe vai dentro da cabeça. Nunca vais saber o que é que lhe vai dentro da cabeça. Como é que eles podem alguma vez saber o que é que vai dentro da minha cabeça? Sei lá o que é que tu estás a pensar. Sabes o que é que eu estou a pensar? A graça é essa, é imaginares o que é que eu estou a pensar, é o esconder o visível para mostrar o invisível. É muito mais interessante dares a possibilidade ao espectador de imaginar o que é que o actor está a sentir, do que espetar-lhes, pespegar-lhe completamente o que o actor está a sentir, De uma maneira linear.

Há pouco dizias que não há um método, mas usas esse método ou processo, para todos os teus filmes?

Sempre usei e agora está cada vez mais sedimentado, mas não quer dizer que seja um

método, porque eu adapto-me aos actores que tenho, com uns funciono de uma maneira,

com outros funciono de outra. Por exemplo, no documentário [Trabalho de Actriz,

Trabalho de Actor], quando me perguntaram se eu os obrigava a fazer a biografia do

personagem, a história passada do personagem, porque é que são e porque é que não

são… a Teresa Madruga que tem 60 anos chegou à sessão dela, em que me ia explicar o

personagem, e onde eu estava a preparar-me para debater com ela o personagem e

obrigá-la a convencer-me da personagem, ela chegou e tirou umas colunas dentro de um

saco, ligou um gravador às colunas, sentou-se e ligou o gravador. Tinha estado até às

quatro da manhã a gravar a personagem, e vinha vestida em personagem e penteada em

personagem. O que ela pôs a andar eram 2h30 de história da personagem, gravado com

a voz da personagem. Portanto, adaptas-te.

E aí o que é que fazes a seguir?

É não fazer nada! Deixei e aproveitei o que eu quis.

Obrigavas a pará-la quando te surgiam questões?

Não. Aí não questionei nada. Limitei-me a pôr a câmara a filmá-la, a ela e à coluna, que é uma das partes boas do documentário, e depois na transcrição aproveitei o que eu quis. Isto foi a discussão da personagem, depois na discussão das cenas sim, mas a personagem era a personagem dela.

Utilizas actores profissionais e actores não profissionais.

Tal como o Rothko dizia que gostava de chegar à emoção pura, eu gostava de chegar ao ponto em que não se percebesse num filme meu de ficção se era um documentário ou se era um filme de ficção. Cada vez tenho mais a noção que é isso que eu quero fazer, por isso é que disse que quando descobri o sistema e o que quero, é assumir que a partir de agora se calhar não vou fazer mais filmes. Por acaso isso aconteceu um bocadinho no Ganhar a Vida porque não tinha actores portugueses em França para fazerem as emigrantes, de maneira que fui buscar e fiz casting. E aconteceu no Noite Escura mas já de uma maneira mais consciente porque não havia maneira de transformar personagens secundárias em personagens muito consistentes se não usasse as próprias meninas da noite. Portanto fiz um grande trabalho de recolha de meninas da noite e fiz o casting a algumas. Mas no fundo não precisei de fazer muito casting, fiz casting às personalidades mais do que à capacidade de representar, porque elas representam-se a si próprias. Neste último filme [Sangue do Meu Sangue] não é bem usar actores e não actores, são todos actores mas cheguei a um ponto, por causa deste trabalho, em que há uma grande parte do filme em que não se percebe que eles são actores e que fazem parte daquele bairro. Porque a improvisação e o naturalismo, ou seja, uma pessoa fazer de si própria e representar-se a si própria, não tem pensamento, não tem elaboração mental, não tem interpretação, e o que interessa na arte é a interpretação, é a representação abstracta daquilo que se faz. É muito simples, o exemplo das pinturas dos bisontes das grutas de Alta Mira, tudo são símbolos, quando falamos são símbolos, são sempre metáforas. Aqueles bisontes são uma metáfora feita por aquele senhor a representar uma realidade que ele conhecia. Para além disso, era uma metáfora provavelmente mágica ou religiosa, ou seja, já é o segundo nível, a representação da cena real de caça, é ao mesmo tempo uma representação mitológica, simbólica de pedido de favores aos deuses. Quando tu as vês agora, já fazes uma representação absolutamente diferente, não consegues fazer a representação mitológica, o pedido de favor, tens que fazer uma representação imaginada da cena real de caça. E independentemente disso, as pinturas são bonitas e emocionam-te só por si. Isto é que é a arte.

Essa fusão do real e da ficção não te prejudica? Usar actores profissionais?

É mesmo essa a intenção. Acho muito mais interessante ter um actor, desde que seja inteligente e talentoso, a interpretar uma pessoa real, a disfarçar-se de pessoa real que não é ele, embora seja, porque os actores também nunca deixam de ser eles próprios, não há essa coisa da transformação. Há uma anedota que é: a Rita a certa altura deu um workshop que lhe correu bastante mal. Ela não levava nada preparado e na primeira aula começou a perguntar aos meninos e às meninas porque é que queriam ser actores, e houve uma menina, estúpida, que disse: – “ai a mim o que me interessa é a transformação”. – “E o que é que queres dizer com isso?”, – “É assim pah, é como naquele filme d’As Horas.” E a Rita parou um bocadinho e disse – “Ah! Estás a falar de narizes?” Percebeste? Um actor é sempre ele próprio. Dizem que o Robert DeNiro é sempre igual a ele próprio, e é, forçosamente não pode ser igual a outro. Faz são papéis diferentes e personagens diferentes, mas são sempre feitos por ele. Portanto, o que me interessa é que os actores interpretem o meio onde eu os coloco e o façam à sua maneira, é a visão deles daquele meio. E se a visão deles for genuína e trabalhada é tão concreta como uma pessoa real e mais interessante porque é uma interpretação.

Escreves pensar nos actores?

E com eles. E sempre escrevi a pensar neles. Sempre. A única excepção foi os “Sapatos pretos” que foi uma história real, de resto foi sempre a pensar neles.

E a história surge-te quando estás na escrita do guião ou já tens uma ideia preconcebida?

Durante bastante tempo usei uma facilidade, como não tenho grande jeito para escrever histórias, eu não sou escritor, aproveitei-me muito dos gregos porque estão lá os arquétipos todos dos personagens ocidentais, da nossa civilização. Não são dos Indianos nem dos Japoneses, porque as civilizações são diferentes, portanto os arquétipos são outros, mas da nossa civilização judaico-cristã estão lá os arquétipos todos. E estão as histórias primordiais todas. Foi por isso, por uma questão de facilidade por um lado, e por outro há uma razão pessoal profunda e psicanalítica, que é o meu interesse desde sempre tanto pela Elecktra como pelo Hamlet, sendo que o Hamlet é uma versão da Elecktra. A história da Elecktra sempre me interessou profundamente e a trilogia do Noite Escura que acaba no Mal Nascida, faltando-lhe a posta do meio, foi só feita com um fim, que era chegar à Elecktra.

Qual seria o filme e ainda pensas fazer o filme que falta da trilogia?

Precisava de me transformar numa vedeta internacional porque o filme corresponde à conspiração da Clitemnestra contra o marido, quando o marido está na guerra de Tróia, de onde é uma adaptação do Agamenon do Ésquilo e da Ilíada, onde tem 20 e tal actores que são aqueles que entram na Tróia do Brad Pitt. E passava-se como é lógico actualmente, passar-se-ia, porque Tróia também foi uma guerra económica e de poder económico, no crime organizado em Espanha.

Mas tens o filme todo?

Não, o filme está escrito mas sempre foi para ser completamente adaptado à realidade, tenho um dossier de centenas de páginas sobre o crime organizado europeu. E não só, porque há ramificações. Mas tinha de ser todo reescrito em função do que fosse encontrar em Espanha, tinha que ir para lá. Mas principalmente tem cerca de 20 actores, dois terços espanhóis e um terço “tugas”, seria uma família “tuga” que já lá estava. E é caríssimo, não são propriamente as cenas de acção, que isso até se resolve, são os 20 e tal actores. Como todos os personagens, não podes transformar o Ulisses num personagem absolutamente secundário. O Ulisses na Ilíada, não é só o Ulisses.

Os teus filmes têm sempre a ver com o que chamam o país real. Geralmente são temas mais do documentário do que da ficção. A ficção portuguesa muitas vezes parece afastada do real.

Mas porque a ficção portuguesa em geral não é boa. Se fosse boa tinha sempre a ver com o país real, porque agente tem de falar daquilo que conhece e daquilo que nos diz respeito. Como é que eu podia fazer um filme num país que eu adoro à distância que é a Nova Zelândia? O que é que eu sei dos Maori? O que é que eu sei da relação dos Maori com os brancos que foram para lá? Não sei coisíssima nenhuma! Como é que eu podia fazer um filme na Nova Zelândia? A não ser que fosse para lá uns anos antes. E será que aquela realidade me ia interessar e me ia dizer alguma coisa? Eu tenho décadas de formatação à realidade portuguesa, odiando-a ou não, tenho décadas de formatação, é o que eu conheço, agente só pode falar daquilo que conhece. Mesmo o Fernando Pessoa falando e contando uma história abstracta, não há mais português que aquele. E é uma ideia fundamental que eu descobri há pouco tempo, uma metáfora. No fundo a metáfora é uma abreviatura, é uma concisão daquilo que agente chama a representação abstracta. E a metáfora é sempre mais poderosa do que a não metáfora. Um exemplo de uma metáfora, “está a chover muito” ou “está a chover a cântaros”, qual é que é mais poderoso? Embora seja uma metáfora já completamente de entrada no léxico é “está a chover a cântaros”. A metáfora é sempre mais poderosa. E na montagem, aquilo onde eu quero chegar agora, é o plano seguinte ser uma metáfora do anterior, ou seja, já é a metáfora da metáfora porque o primeiro já é metáfora.

É outra das tuas características esse grande trabalho de investigação.

Mas isso é o feito do diletantismo que a irresponsabilidade portuguesa permite. Não podes escrever porra nenhuma em condições sem conheceres a realidade que estás a tratar. Não é por acaso que o Guillermo Arriaga diz que agora que tem mais prática só demora dois anos e meio a escrever um argumento. Só um ano e meio é ir para o local escrever a coisa em condições. Sendo, ainda por cima, sítios que ele já conhece, onde cresceu, o que não o impede de fazer a investigação.

As tuas personagens mulheres são sempre personagens fortes.

São sempre fortes porque eu nunca arranjei um gajo que se comparasse à Rita Blanco quando tinha 18 anos, nada, não havia, não tinha. Nunca arranjei gajos que pudessem ser personagens tão fortes como a gaja. Só agora, neste último filme é que descobri um gajo que eu já sabia, mas do qual eu tinha um bocado medo por ser doido e por ser muito do método, eu não queria muito do método, o único tipo que eu consegui agora que é tão generoso como a gaja foi o Nuno Lopes. O único em 30 anos de carreira.

Há algum denominador comum nos teus filmes?

Durante algum tempo foi a raiva ao país.

Nos teus filmes o espaço tem um papel importante, por vezes é claustrofóbico, as pessoas estão encurraladas, como por exemplo no Noite Escura.

Eram defeitos que eu fui limando. Mas a ideia não nasceu do espaço ser fechado. Nós nunca vivemos com os outros e nunca vemos o que é que se passa, é isso que é interessante no filme e na arte, mostrar partes que as pessoas não vêem, mostrar sem mostrar. E onde é que uma tragédia podia passar mais desapercebida? Numa casa de putas que é uma mentira, onde elas representam o tempo todo, tanto elas como os clientes e ninguém ia reparar em tragédia nenhuma. A ideia era envolver, sempre foi, já nessa altura era, agora as coisas estão mais claras na minha cabeça, era envolver a tragédia num nevoeiro de sordidez, e não se perceber muito bem o que é que era mais importante, se a sordidez se a tragédia.

Como é que vês o papel da câmara no filme?

O papel da câmara é um instrumento que serve para esconder. Já dizia o Renoir, “é tão importante o que está fora de campo como o que está dentro de campo”, às vezes é mais.

O som nos teus filmes é muito bem trabalhado e pensado. Por exemplo, no Noite Escura em que há uma sobreposição de conversas constante.

Exactamente. Quando estás na vida tens que seleccionar aquilo que queres ver e és distraído, e a tua representação abstracta é condicionada pelo teu interesse. Não tem de ser forçada. É como dizia o Schopenhauer, o que é que é a representação abstracta? O exemplo dele é claríssimo e nunca encontrei melhor: a nuvem. Quando olhamos para uma nuvem, nenhum de nós vê a mesma coisa na nuvem, e nenhum de nós está a ver aquela nuvem. A nuvem em si é um conceito, não é isso que agente está a ver, agente está a fazer uma representação da nuvem. Tão simples, eu vejo um cavalo, tu vês um coelho, ou tu vês uma coisa poética e eu vejo uma coisa dramática. Mas nenhum de nós está a olhar para as gotas de água condensadas, pois não?

O som fora de campo é muitas vezes mal explorado.

Um dos choques do cinema mundial do uso do som fora de campo é o princípio do The Sraight Story do David Lynch, em que está o velho e a filha a falar ao telefone. É dos melhores papéis que alguma vez a Sissy Spacek fez na vida e tu quase que não a vês. Vê-la num plano assim de repente e está lá tudo. É um exemplo do que tu podes fazer com a sinceridade e a genuidade dos actores, é que ela esforçou-se como “oh carago” e tu não a vês, mas o que é certo é que está lá o esforço dela, está lá tudo, é fantástica.

Antigamente dizia-se muito mal do som dos filmes portugueses.

Ainda hoje há esse mito. O som dos filmes portugueses não era brilhante mas não era pior que os outros. O que acontecia é que nos filmes estrangeiros tinhas as legendas e tu tinhas a noção, porque lias automaticamente, mesmo sem querer lias as legendas. Ao leres as legendas percebes tudo o que eles estão a dizer na língua estrangeira e ficas com a noção de que o som é melhor do que o nosso. Era um bocadinho melhor que o nosso mas se experimentasses fechar os olhos? É que não percebias um corno.

Foste uma das primeiras pessoas a passar para o digital.

Não foi de propósito, foi adaptar aos meios que havia.

Mesmo depois quando fazes o Ganhar a vida?

Aí já foi de propósito porque gostámos do que tinha-mos feito nos Sapatos pretos.

Achas importante trabalhar sempre com a mesma equipa técnica?

Acho que sim. É como com os actores, vais criando afinidades e vais criando uma equipa que já são amigos, que nos entendemos quase sem falar. Também há uns que vão sendo eliminados, mas os que ficam é um corpo, até agente se zangar porque depois isso acontece como nas companhias de teatro, funcionam durante um tempo, depois as relações humanas, os egos e as coisas, a certa altura acaba.

Fala-se muito de criar uma indústria em Portugal, qual é a tua opinião sobre isto?

Basta olhar para os números e para o tamanho do país para perceber que nunca poderá, nunca houve, nem nunca vai haver uma indústria em Portugal porque o país não tem tamanho para isso. Não tem um mercado para poder rentabilizar o produto em função do mercado. Ter a veleidade, a astúcia de querer rentabilizar um produto comercial tuga internacionalmente seria quadruplicar ou quintuplicar o valor de produção do filme para poder ser concorrencial com o valor de mercado do filme Francês, do filme Espanhol, do filme Italiano. Sendo que, basta ter dois dedos de testa e pensar, quais são os filmes comerciais franceses, italianos e espanhóis que estrearam em Portugal. Tirando os mega sucessos como o Bem-vindo ao Norte mas que não foi um mega sucesso em Portugal. Quais foram os filmes mega sucessos espanhóis que estrearam em Portugal?

O Cela 211.

E foi um sucesso, não foi? O Mar Adentro do Aménabar foi um sucesso relativo em Portugal mas contam-se pelos dedos. Os espanhois fazem 120 filmes por ano, grandes sucessos. Tu sabes, por exemplo, o que é o Torrente?

Não.

É uma série de filmes espanhóis, dez milhões de espectadores cada um. Uma espécie do Esteves detective. Vai no quatro. Dez milhões cada um. É uma espécie de Duarte e Companhia bom, com um detective fascista, franquista, absolutamente burgesso, uma espécie de Herman, com um gajo que é uma vedeta. Queres criar uma indústria aonde? Mas sabes quem é o Brillant Mendonza não sabes?

Sim.

Achas que o Brillant Mendonza é um sucesso nas Filipinas? Não é. Os números estão aqui a dizer, os números não são inventados. Basta pensares que o Avatar fez um milhão e duzentos mil espectadores. Achas que isso é muito? Para Portugal é muito. Mas em termos de rentabilização de algum produto é muito? Não é. Um milhão e duzentos mil espectadores dava exactamente para o produtor, um milhão e duzentos mil. Mesmo que o produtor não tivesse gasto um tusto, que é o caso em Portugal, ficava com esse milhão e duzentos mil para reinvestir num filme. Achas que um milhão e duzentos mil é dinheiro para fazer uma super produção que tenhas a certeza que vais rentabilizar a seguir? Um filme que eu fiz agora custou à volta de um milhão e o Pedro está à rasca para pagar os juros dos empréstimos que teve de pedir para o filme se poder fazer, porque o ICA paga atrasado como é normal. Isso é uma das funções do produtor, é pedir o empréstimo sobre o contracto do ICA, mas depois tem de pagar os juros.

E sociedades privadas?

Um milhão e duzentos mil…achas que há bancos ou sociedades privadas que vão investir nesta rentabilidade extraordinária? Sendo que um milhão e duzentos mil é o Avatar, porque os números portugueses são outros, são os 380 mil do Crime do Padre Amaro.

Porque é que achas que há rivalidade entre o cinema de autor e o cinema comercial.

Porque é uma rivalidade que não faz sentido nenhum e tem a ver com interesses particulares dos velhos, tem a ver com senhores que se julgavam da Nouvelle Vague e que nunca lá chegaram. Limitaram-se a fazer umas coisas que não foram a festivais importantes e a fazer uns sucessos de trazer por casa. De maneira que, naturalmente e pessoalmente, começaram a valorizar esses sucessos de trazer por casa e a menosprezar os sucessos internacionais, por relativos que sejam, não percebendo que da diversidade e da quantidade é que nasce a qualidade. Começaram também a defender a ideia de que para se fazer um filme de sucesso comercial, esse filme tem de ser feito com mais dinheiro do que os outros. Eu respondo o contrário, porque se é assim um sucesso comercial tão grande para que é que precisam de dinheiro do Estado? Se é assim uma coisa tão boa e que vai render tanto, precisa de muito menos dinheiro do Estado. Com certeza que arranja investimentos privados. Só que o investimento privado em Portugal dá, por forças das circunstâncias, porque não há dinheiro para fazer melhor, dá as telenovelas da TVI. Essas sim, são de facto rentáveis, mas são feitas ao preço da uva mijona como tu sabes. As condições de produção são miseráveis, fazem vinte e tal cenas por dia, quando não são mais, aí sim. Então façam como os senhores da TVI, a ver se conseguem fazer melhor que eles, e isso sim é o produto industrial português, é o possível. Já nem os brasileiros fazem assim porque têm muito mais dinheiro.

Mas o cinema português de autor é muita mau. É que são maus uns como os outros.

O que é que é o cinema de autor para ti?

Cinema de autor é só tu teres uma ideia, seres justo, seres sério com essa tua ideia, em relação a ti próprio, e tentar levá-la até ao fim segundo os teus princípios. Como o grande exemplo é o Sr. Oliveira

O Que achas do César Monteiro?

O César Monteiro é outra coisa, isso não tem nada a ver. O César Monteiro não acho que fosse um cineasta, acho que era um personagem, como personagem era genial, era muito inteligente e menos maluco que aquilo que parecia, ou que queria fazer parecer. Dava-lhe um bocadinho na bebida, dependia dos momentos, era muito inteligente e construiu uma persona. Mas a persona nunca ultrapassava certos limites porque sabia que para isso era preciso ter alguma caução cultural em cada filme que fazia. Aconteceu que, num filme, ele emborrou-se tanto que perdeu o bloqueio da caução cultural, e esse filme é genial do princípio ao fim que é a Comédia de Deus. Começavam a filmar às 8h da manhã e às 8h30 paravam porque o realizador tinha literalmente caído para o lado. E nesse filme, derivado ao estado, ele não tinha os bloqueios, não tinha os constrangimentos da caução cultural e o filme não os tem.

O cinema português está a tentar tornar-se mais americano?

Está em alguns casos, depende. Uma primeira obra portuguesa chamada Body Rice que não tem nada a ver com o americano, mas é uma excepção. Depois os outros acham que sim.

Hoje em dia olhamos para as salas portuguesas e há dois, três documentários em exibição. Vês uma razão prática para isso, o custo mais baixo? Maior apetência por parte das pessoas?

As pessoas antes não iam ver documentários porque os documentários não estreavam. Os documentários também não estreavam porque os documentários não se faziam. Porque isso foram evoluções feitas nos últimos anos em que as coisas melhoraram muito, agora vão piorar muito. Não havia concursos para documentários e não havendo não havia documentários. Só eram produzidos pela RTP, eram umas coisas feitas sem dinheiro nenhum e, portanto, não se faziam documentários. Neste momento, fazem-se mais documentários que filmes porque o dinheiro não é comparável, enquanto que num filme numa primeira obra tens 450 mil euros, para um documentário tens no máximo 80 mil.

Achas que pode ter a ver com o sucesso do Michael Moore?

Não porque há coisas muito mais interessantes que essas. O custo, aí sim, a relação custo-rentabilidade do documentário quando ele funciona não tem nada a ver. Uma coisa que custa 90 mil euros e que te faz 20 mil espectadores é muito diferente. Faz 20 mil euros para o produtor, é muito diferente. Com 20 mil euros podes lançar o próximo documentário. E para as salas então… não custa nada, nem para os distribuidores, porque há o preço de venda à distribuição. Eu não sei os preços dos filmes mas é normal um filme de sucesso médio internacionais custar entre os 50/60 mil euros para a distribuição em Portugal. Para isso tinham de fazer 300 mil espectadores, não é verdade? Mas depois a coisa é compensada, às vezes é à percentagem, depois é compensada com os DVD´s, com as vendas à RTP ou às televisões portuguesas, aos cabos. É aí que tu vais buscar o resto, não é na sala que tu rentabilizas.

E o caso do Fantasia Lusitana?

Este documentário foi caro porque as imagens são caras. Mas o documentário teve os 80 mil do ICA, mais 20% disto dá 16 mil da RTP, depois teve à volta de 50 mil da câmara de Cascais e não sei se teve algum da câmara de Lisboa. Portanto ainda teve bastante dinheiro. De qualquer maneira já vendeu um horror de DVD´s, à volta de 10 mil e fez 5 mim espectadores nas salas.

Não estavas à espera de um sucesso destes.

Não, foi o meu maior sucesso relativo desde sempre, porque só estreou numa sala.

Quando fazes um filme pensas nas reacções do público?

Não, não. Evidente que faço o filme em função do público, não faço o filme de uma maneira autista. Mas a principal preocupação é fazer uma coisa da qual eu pessoalmente acho que é séria e que corresponde à intenção inicial que eu tenho. Porque forçosamente se isso tudo for sério, a reacção do público irá ser boa. Não faço rigorosamente nada, não faço concessão nenhuma à reacção nem de riso nem de choro do público, não faço concessão nenhuma em relação a uma possível adesão do público. Até porque não há público, há públicos, e portanto não sei qual é o público. De certeza que não é o público das telenovelas da TVI que vai gostar dos meus filmes, mas isso eu também não estou interessado em fazer. A partir do momento em que pensas no público, tens de ser forçosamente ilustrativo, tens de fazer uma coisa entendível e absolutamente entendível e só de uma maneira à primeira vista pelo público em geral. Isso é forçosamente ilustrativo, é o contrário da arte, é uma ilustração, ilustração não quero fazer. Já nem sei fazer, já soube. É respeitar os eixos e outras coisas assim, demorei muitos anos a aprender que as regras são para se desrespeitar e saber como as desrespeitar, para agora voltar para trás.

Tentaste transmitir alguma mensagem quando fizeste o documentário?

Não, se passares uma emoção, forçosamente passas alguma coisa. É tão simples quanto isto, basta pô-los em oposição com os outros e tens um retrato do fascismo. Não é preciso ser didáctico e de pôr ainda por uma voz a dizer “atenção mas isto é muito mau; estes senhores eram muito perigosos”. Não é preciso, está lá. A mensagem está sempre dentro de ti, é o que tu sentes.

Este documentário põe-me deprimido.

Embora te fartes de rir. Exactamente porque as coisas ainda não são tão diferentes. Mas eu também não precisei de explicar que as coisas não mudaram assim tanto. Está no filme. Desde que tu faças as coisas de uma maneira que é profundamente interessante para ti, a mensagem acaba por lá estar, não é preciso escolher uma mensagem, isso acaba por ser redutor, se escolhes uma mensagem é redutor. O conceito não, mas ter a mensagem como conceito é redutor.

Que realizadores tens como referência?

O Mizoguchi e o Ozu, e um que eu adoro, foi assistente deles, é o Imamura. Quando era miúdo o Ford, como é lógico, e o Hawks. Odeio o Bresson. Quando eu comecei a aprender porque é que se faziam filmes foi com o Cassavetes, depois percebi que os chineses vêm todos do Cassavetes. E neste momento gosto imenso do Brillant Mendoza porque faz um bocado aquilo, mas muito melhor porque pode, aquilo que eu fiz no Noite Escura. Ele tem uns gajos contratados nas ruas de Manila que lhe vão trazendo histórias todos os dias, ele paga para lhe trazerem histórias e a partir daí é que ele escreve os argumentos, o que é genial. Mas em Portugal não tens dinheiro para isso, se calhar é possível mas… Depois... claro que o Eisenstein. Revi O Couraçado Potemkin, continua a ser uma lição magistral de montagem. A cena da escadaria não é por acaso que é dada nas escolas, achas que eu percebi quando era puto? Não percebi nada! Estúpido! Só percebi agora, por isso é que fez falta a escola. É uma lição magistral de montagem, magistral, magistral! É o plano seguinte ser a metáfora do anterior, está lá tudo, tudo! Os bons filmes do Bergman são intemporais, absolutamente, e tem coisas... elipses com falta de racord, feitas em 66 dentro da cena, dentro do plano e tu comes aquilo tudo porque aquilo não se nota, e o que se nota é a metáfora da metáfora. Depois o ‘4 meses, 3 semanas e 2 dias’ do romeno, vi muito esse filme porque quanto mais o vejo menos defeitos lhe encontro. A actriz que é Ana Maria Marinca diz que “ser actor é tirar todas as máscaras e ser mais real do que na vida”, é representar menos do que na vida e é verdade.

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